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Bésame mucho

16.12.2016 | Acadêmicos, Gerais

Mario Santoro Júnior

Tarde chuvosa e fria de um mês de novembro. Pela janela vê-se o céu escuro repousar sobre a montanha. O cheiro da relva verde inunda toda a sala. Nesses dias, mais do que nos outros, sinto-me triste e melancólico. Minha eterna companheira para esses momentos é a velha espreguiçadeira onde me deito e deixo meus devaneios soltos. Quase sempre percorrem uma longa estrada até um passado distante. Subitamente me dou conta da melodia que ouço. Quantas vezes a ouvi? Certamente muitas. Era a melodia que não podia faltar nos bailes de formatura da minha São Paulo de meio século atrás. “Bésame, bésame mucho” era a melodia. 

A São Paulo daquele tempo era uma cidade provinciana, com pouco mais de quatro milhões de habitantes. Nessa época, de dezembro a março de cada ano, aconteciam dezenas de bailes de formatura. E aconteciam nos salões do Palácio Mauá, do Aeroporto de Congonhas, então muito distante do centro, da Casa de Portugal, do Clube Homs, do Clube Pinheiros e do Clube Transatlântico. Nesses salões, os bailes eram animados pelas orquestras do Zézinho, do Henrique Simonetti, do Orlando Ferri, do Osmar Milani, do Sylvio Mazzucca, quando não pela Orquestra Tabajara do maestro Severino Araújo ou pelo conjunto do Renato e seus Blue Caps. Quantos sambas, valsas, boleros, “jazz”, foxtrotes, sambas-canções dançaram-se ao som dessas orquestras, embalados muitas vezes por “crooners”, alguns dos quais se tornariam cantores famosos nas décadas seguintes. Duas melodias eram sempre presentes nesses bailes: “Moonlight Serenade” e “Bésame mucho”. 

Os casais dançavam juntos e, após uma certa intimidade, respeitosamente, com os rostos colados. Os homens vestidos de “smoking” ou “summer” e as moças com os famosos vestidos de baile, quase sempre longos. Como me lembrei do meu “smoking”, presente do meu velho pai, o qual foi comprado na loja Piccadilly, que se situava na esquina da Av. Ipiranga com a Av. Cásper Líbero! Com ele fui a incontáveis bailes de formatura. 

As moças iam acompanhadas por seus pais ou, no mínimo, com seus irmãos. Como quase sempre não tínhamos o convite, ficávamos na porta do Clube e pedíamos permissão para entrar junto com a família. Permissão que era dada tão somente para entrada no salão. Uma vez lá dentro, agradecíamos o favor e separávamo-nos da família. Percorríamos os olhos pelo salão à procura de um leve olhar que, ainda que discreto, fosse uma senha para que nos aproximássemos da mesa e solicitássemos autorização para “tirar a moça” para dançar, o que acontecia sob o olhar vigilante dos pais. Muitos namoros assim se iniciavam. Embora dançando juntos, as moças, pelo menos enquanto não conhecessem melhor os cavalheiros, mantinham o braço direito esticado e apoiado no ombro do seu par, demonstrando, assim, que essa era a distância mínima que deveria ser mantida. Nos intervalos das danças, bebia-se cuba-libre ou Hi-Fi. 

Foi num desses bailes que, ao som de “Bésame Mucho”, Osvaldinho, um dos amigos de nossa turma, tirou para dançar uma morena linda, alta, de cabelos negros, olhos grandes e verdes e lábios carnudos. Foi amor à primeira vista e que, no decorrer dos anos, transformar-se-ia numa paixão obsessiva. Naquela noite dançaram juntos várias vezes. Mariazinha, assim ela se chamava. Por mais que insistisse, ele não conseguiu que ela dissesse seu endereço, sobrenome ou qualquer outro dado pessoal. Mas, pelo menos, conseguiu combinar um novo encontro para o dia seguinte, um domingo, às 3 horas da tarde. Eles se encontrariam na porta da Catedral da Sé. Um local impensável para nossos dias, mas comum naquela época. 

No dia seguinte, ao se levantar, percebeu que nunca se sentira tão bem-disposto. Cantarolava, irradiando um ar de felicidade. Barba feita, banho tomado, vestiu a sua melhor roupa e partiu para o encontro tão esperado. O que ele não esperava é que, lá chegando, encontraria a praça tomada por milhares de fiéis, os quais lá estavam para um Congresso Eucarístico. Procurou desesperadamente por Mariazinha no meio daquela multidão. Empreitada que só abandonou quando a praça, à noite, já estava vazia. Mas, persistente que era, continuou a procurá-la desde então. A cada novo rosto tenta descobrir se ali não está escondida sua Mariazinha de tantos anos atrás, pois tem certeza que ainda vai encontrá-la e, quando isso acontecer, aí vai poder dizer: 

“Bésame… Bésame mucho, 

Como si fuera esta noche la última vez! 

Bésame… Bésame mucho 

Que tengo miedo a perderte, 

Perderte después” 

Mario Santoro Júnior 

Titular da Academia de Medicina de São Paulo (cadeira 69), 

Titular da Academia Brasileira de Pediatria (cadeira 24) 

Observação: agradecimentos à prof.ª Thelma Pontes pela revisão gramatical