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Flerts Nebó

17.08.2017 | Acadêmicos, Gerais

UM HERÓI QUE VIROU LENDA VIVA DA SOBRAMES – SP

Helio Begliomini

“A morte está escondida nos relógios.”
Giuseppe Gioacchino Belli (1791-1863), poeta italiano

Há coisas que acontecem na vida e que ficam para sempre. São tal qual sementes: germinam, criam raízes, desenvolvem-se, crescem, robustecem-se, florescem, dão frutos e alimentos; proporcionam belas paisagens, oferecem sombras, produzem novas sementes: multiplicam-se, disseminam-se… perpetuam-se. 

Nada ocorre por acaso. Aliás, bem sintetizou o escritor francês Anatole France (1844-1924), membro da cadeira n. 38 da insigne Académie Française e laureado com o Nobel de Literatura em 1921: “Acaso é o pseudônimo que Deus usa quando não quer assinar o nome”. 

Há cerca de 30 anos fui surpreendido com uma ligação de um senhor que tinha uma entonação de voz diferente, nasalada, curiosa. Dizia ser médico; que escrevia e ouvira falar de uma Sociedade Brasileira de Médicos Escritores. Chegara a mim por intermédio de colegas cariocas, visto que eu era membro da regional fluminense havia dois anos, em virtude da desativação da representação paulista. Ele aparentava possuir um grande dinamismo e realmente ansiava por pertencer a essa entidade, que, àquela altura, também contava com outros interessados paulistas. Trocamos nossos telefones e mantivemos um breve contato a distância, uma vez que, por imposição dos colegas cariocas, deveríamos fundar a regional paulista da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames – SP). 

Foi inesquecível aquela noite de 16 de setembro de 1988, na Pizzaria Ilha de Cós, na Vila Clementino, onde estiveram quatro confrades da Sobrames do Estado do Rio de Janeiro para fundar e dar posse à primeira diretoria da Sobrames paulista. Maria José Werneck, Syllos de Sant’Anna Reis, André Petrarca de Mesquita e Paulo Silva de Oliveira (Paulo Fatal) não mediram esforços para ver novamente em solo bandeirante a representação ativa no torrão onde a entidade havia surgido em 23 de abril de 1965, nas dependências da Associação Paulista de Medicina (APM). 

Em determinado momento, os colegas cariocas nos pediram que indicássemos os nomes e cargos que deveriam compor a nova diretoria. Surpresos e sem nos conhecermos, não foi difícil, numa breve confabu- lação, que indicássemos para presidente o mais experiente e o mais idoso entre nós – Flerts Nebó, ou simplesmente Nebó, como haveríamos de chamá-lo –, cabendo a mim a função de vice-presidente. Daquela ditosa efeméride encontra-se muito ativo até os dias de hoje o estimado confrade Luiz Jorge Ferreira, que ocupou o cargo de 2o secretário da primeira diretoria. 

Os anos iniciais foram difíceis. Havia muitas ideias, dedicação, motivação, comprometimento, mas faltavam divulgação, sócios empenhados, enfim, mão de obra. Flerts Nebó dedicou-se com muito esmero e não somente trouxe diversos sócios como também fez de sua residência a sede da entidade, e por lá funcionou mais de 20 anos! 

Ao ser convidado por Maria José Werneck, membro- -fundador da sui generis Academia Brasileira de Médicos Escritores – Abrames, sodalício com sede no Rio de Janeiro, indiquei Flerts Nebó para, juntamente comigo, tornarmo-nos representantes paulistas da novel entidade. Ele ocuparia a cadeira de n. 39 e havia escolhido para seu patrono um antigo professor seu de farmacologia – Jayme Regallo Pereira (1893-1963). 

Inapagável em nossas memórias foi a solenidade de instalação da Abrames, ocorrida em 26 de maio de 1989, no Palácio da Cultura Gustavo Capanema, na cidade maravilhosa. Ano a ano fomos, acompanhados de nossas esposas, em meu carro, ao Rio de Janeiro, por ocasião das Semanas da Abrames, que têm ocorrido tradicionalmente no mês de novembro. Flerts Nebó não somente frequentou assiduamente enquanto pôde as Semanas da Abrames como também foi padrinho nesse sodalício de diversos recipiendários paulistas. 

Enquanto voltávamos do Rio de Janeiro, confabulávamos no carro sobre como atrair mais membros para a Sobrames – SP. Num repente, ele disse algo assim: “São Paulo é a terra da pizza! Nossa entidade nasceu numa pizzaria! Por que não criarmos a Pizza Literária!?”. Feliz ideia, que teve início em 20 de junho de 1989, e que tem dado certo até hoje, servindo não somente para confraternização como para lazer e enriquecimento cultural. Foi dele também a ideia de instalar um informativo aos associados, que, posteriormente, por minha sugestão, após um brainstorm da diretoria, foi batizado de O Bandeirante, nome idealizado por Régis Cavini Ferreira e escolhido democraticamente dentre dezenas de outros apresentados. Flerts Nebó desenhava muito bem e idealizou o logotipo da Sobrames paulista, além de sugerir e coordenar a primeira coletânea da entidade, que recebeu como título “Por um lugar ao sol” (1990). Ademais, tencionando organizar em São Paulo o XV Congresso Nacional da Sobrames, em 1994, foi criador e organizador da I Jornada Médico- -Literária Paulista, sediada em Jundiaí, em 1991. Dizia ele que eventos como esse serviriam de aprendizado para algo maior. Esteve também na organização da II Jornada Médico-Literária Paulista, ocorrida em Bragança Paulista (1993), assim como em diversas outras que se sucederam. Sua pujante atuação e liderança contagiante ultrapassaram as fronteiras paulistas, tendo sido eleito presidente da Sobrames, sede nacional, para o mandato 1994-1996, além de ter, posteriormente, idealizado e criado a Lisame – Liga Sul-Americana de Médicos Escritores, tornando-se seu primeiro presidente (1998-2001). 

Flerts Nebó já demonstrava pendor para a arte desde os tempos universitários. Em 1944, juntamente com seu irmão mais novo Plirtes Nebó, idealizou o Show Medicina, onde os alunos eram artistas, diretores, maquiadores, roteiristas, músicos e tudo o que existe num teatro. O Show Medicina tornar-se-ia tradicional e sui generis na história da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, renomada casa de ensino onde ele se graduou em 1946. 

Dedicou-se à reumatologia e foi um dos pioneiros dessa especialidade em nosso Estado, tendo recebido na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, ainda na condição de estudante, orientações do Dr. Gil Spilborghs, assistente da 3ª clínica de medicina de homens, sob a chefia do professor Ovídio Pires de Campos. 

Flerts Nebó foi membro da Sociedade Brasileira de Fisioterapia e um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Reumatologia – Regional de São Paulo. Idealizador e criador de seu emblema, exerceu as funções de 1o tesoureiro, e, durante seis anos seguidos, atuou como secretário geral, passando depois para vice-presidente e, a seguir, foi eleito presidente por dois anos. Ganhou bolsa de estudos do Instituto de Cultura Hispânica e foi para a Espanha para um curso de especialização em Madrid, com o professor Jimenez Dias, e em Barcelona, com os professores Pedro Pons e Pedro Barceló, que, na ocasião, eram os expoentes mundiais das cadeiras de clínica médica e de reumatologia. 

Compareceu a diversos congressos de reumatologia nacionais e internacionais, como os realizados em Toronto, Nova York, Istambul, Roma, Buenos Aires, Montevidéu e Santiago do Chile, foi delegado do Brasil no Chile junto à Liga Pan-Americana Contra a Febre Reumática e publicou mais de 100 trabalhos sobre sua especialidade em revistas médicas no Brasil, Espanha, Argentina e Estados Unidos da América.

Flerts Nebó ingressou, em 1948, mediante concurso, como 2o tenente da Força Pública do Estado de São Paulo. Nessa instituição, destacou-se e galgou todos os postos, inclusive o de diretor do hospital, sendo reformado como coronel médico em 1970. Dentre outros cargos e funções, deve-se salientar que organizou e dirigiu o serviço de reumatologia do Hospital do Servidor Público Estadual – Francisco Morato de Oliveira – HSPE-FMO (1963-1969). 

Dotado de grande cultura e de espírito irrequieto, Flerts Nebó sempre tinha algo a fazer ou a aperfeiçoar. Era também um bom questionador e crítico a quase tudo o que se lhe apresentava. Tínhamos uma diferença de 35 anos de idade. Embora manifestasse especial carinho e atenção paternal por mim e pela minha esposa, tratava-nos como grandes amigos, tanto é que não conseguia chamá-lo de “senhor”, como aprendi e sempre procedi com pessoas mais idosas. Nem sempre eu e ele concordávamos em nossas ideias e ações, mas ele soube acatar e respeitar opiniões diversas, particularmente quando convencido de que eram melhores para a Sobrames paulista. Com certeza, isso não era nada fácil para quem tinha caliente sangue espanhol, definido alegoricamente no conhecido ditado popular: “Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay”, ou, em nosso vernáculo: “Eu não creio em bruxas, mas que elas existem, existem”. 

Ao longo do tempo, foi se tornando, reconhecidamente, o grande prócer da Sobrames paulista. Teve a honra de, em vida, ver seu nome dado a um cobiçado prêmio anual de concurso de prosas intitulado Prêmio Flerts Nebó. 

Nebó possuía predicados multifacetados. Dedicou-se igualmente à pintura e muito se destacou nessa arte. Pintou mais de quinhentas telas, muitas delas encontradas em países da América e da Europa. Após a sua aposentadoria, dava aulas de pintura e de língua catalã, idioma que dominava magistralmente. Mas foram a literatura e a Sobrames – SP que nos aproximaram. 

A partir de 1973, passou a escrever seus romances. Autor de mais de oitenta livros (!) entre romances e poesias, e mais de duzentos trabalhos literários nos gêneros memórias, contos, crônicas e biografias, chegou a publicar de quatro a cinco livros por ano (!), o que demonstra sua grande inspiração e inegável capacidade de trabalho. 

A propósito, em 1999, recebeu, em noite de gala, na cidade do Rio de Janeiro, o Prêmio Manuel Antônio de Almeida, maior galardão da Abrames, pelo conjunto de sua grande obra, efeméride prestigiada por diversos amigos e admiradores. Recebeu também o X Prêmio José Maria Batista I. Roca (1988), do Governo da Catalunha (Espanha), por ter difundido o idioma e a cultura catalã fora da Catalunha. Ademais, foi galardoado com os títulos de membro honorário (1997) e de membro emérito da Sobrames – SP (2000). 

Flerts Nebó foi agraciado com as seguintes comendas: Valor Militar (1960); comenda do Mérito Cultural (1965) e 2o Centenário – José Bonifácio de Andrada e Silva, ambas da Sociedade Brasileira de Heráldica e Medalhística; Gratidão da Cidade de São Paulo, ofertada pela Câmara Municipal de São Paulo; medalha Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, da Sociedade Geográfica Brasileira; e Defesa da Saúde, do Hospital da Polícia Militar de São Paulo. 

Flerts Nebó nasceu na cidade de São Paulo em 9 de setembro de 1920. Foi casado com Madalena Jesuína Guilermina Musetti Nebó, ou simplesmente dona Magadena, como carinhosamente a chamávamos. Dessa feliz união nasceram sete filhos: Flavia, Fabio, Fulvia, Fernão, Frances, Fausto e Franco. 

Ele foi realmente um grande pai de família e tinha um carinho muito grande por sua esposa, sofrendo muito quando ela partiu, em 20 de fevereiro de 2007, após 55 anos de vida matrimonial! Posso dizer que ele começou paulatinamente a falecer com o passamento de sua querida esposa, que foi não somente uma presença diuturna em sua vida, mas sua grande apoiadora, inspiradora, ou mesmo um importante trampolim em suas ações. 

Tive, juntamente com minha esposa e o casal Walter e Marisa Harris, da Sobrames – SP, o privilégio de compartilhar, em setembro de 2015, ao lado de seus familiares, suas 95 primaveras, e, um ano depois, estive ao lado de seu leito, compartilhando de sua dor, numa das internações hospitalares a que foi submetido. 

Flerts Nebó partiu em 16 de junho de 2017, três meses antes de completar 97 anos. Por tudo o que fez e produziu em sua prodigiosa existência, ele não somente deve ser lembrado como um médico de apurada formação ética e técnica, um exemplar pai de família, um homem dotado de farta cultura, que acreditava e defendia a vida associativa como uma maneira de o mundo se tornar melhor; um destacado pintor e grande intelectual, que deixou uma vultosa obra literária, mas, acima de tudo, um querido e inesquecível amigo, que, tal qual uma árvore, enraizou, cresceu, floresceu e produziu frutos no meu coração, assim como no de tantos quantos tiveram o privilégio de com ele conviver. 

Flerts Nebó foi não somente um herói e o maior protagonista da Sobrames paulista, mas se tornou uma verdadeira lenda viva! A ele estará reservado para todo o sempre- um lugar de relevo no panteão da história dessa querida entidade! 

Helio Begliomini 

Membro da Associação Paulista de Medicina, 

Academia de Medicina de São Paulo, 

Academia Cristã de Letras, 

Academia Brasileira de Médicos Escritores e Sociedade Brasileira de Médicos Escritores