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Lição de proctologia para toda uma vida

19.08.2016 | Acadêmicos, Gerais

Mário Santoro Junior

Numa tarde comum de atividades no consultório, enquanto esperava, pacientemente, que a secretária fizesse nele adentrar o próximo paciente, meus olhos visitaram a sala, como a conferir se tudo estava em ordem. Eis que, subitamente, o quadro com a fotografia dos prédios da nossa velha e querida Santa Casa de Misericórdia de São Paulo prende não só minha atenção, mas, pela emoção que me apossa, também a minha respiração. Quantas vezes vi e revi essa foto. E a cada uma delas mais me emociona a sua magnífica arquitetura. Seus tijolos aparentes, seus arcos góticos encimando aqueles corredores por onde passamos anos a fio, tudo compõe o raro exemplo da arquitetura neogótica dos arquitetos italianos Luigi Pucci e Julio Michelli. Em seus jardins, sob a copa de suas árvores, quantas histórias foram vividas! Quantos ali choraram sua dor, expiaram sua culpa, rezaram pela última esperança… mas, também, quantos trocaram ali juras de amor! Foi ali, naquele jardim, que, muitas vezes, namorei a jovem e bela estudante de medicina e depois esposa, cúmplice e companheira por toda uma vida! Circundando o jardim, vi o imponente Pavilhão Conde de Lara, que, inaugurado em 1939, abrigou inúmeras especialidades. Como um microscópio que, ao comando de um botão, adentra aos mistérios da vida, meus olhos atravessaram uma janela em particular. Sim, foi ali que os fatos que aqui narrarei se desenrolaram. 

Corria o ano de 1966. Época de muitos acontecimentos políticos: São Paulo assiste a seu governador Ademar de Barros ser afastado do cargo e ser cassado pelo Presidente Castelo Branco, o líder comunista Luís Carlos Prestes é condenado a quatorze anos de prisão, Arthur da Costa e Silva é eleito Presidente do Brasil, em eleição indireta, após sofrer um atentado a bomba no aeroporto de Guararapes, em Recife. Assistíamos, assim, naquela época, como hoje, à tumultuada vida política deste País!!! 

Quanto a nós, tínhamos o privilégio de sermos internos naquele hospital que, por tantos anos, abrigou a velha Faculdade de Medicina, depois transferida para o novo Hospital das Clínicas, em Pinheiros. Com a saída daquela Faculdade, como a provar sua vocação pelo ensino, a velha Santa Casa viu nascer uma nova e pungente escola que, já naquela época, demonstrava que viria ocupar a atual posição de destaque entre as Faculdades de Medicina. 

Naquela tarde, internos que éramos do departamento de cirurgia, após o almoço, dirigimo-nos àquela sala que, passados tantos anos, minha vista agora alcançava. Esperava-nos um jovem assistente daquele serviço. Jovem, bonito, alto, de olhos verdes e corpo atlético. Acabara de chegar de um estágio em terras britânicas. De lá trouxera as últimas novidades de sua especialidade: a coloproctologia, e, também, de lá emprestara hábitos e costumes. Isso era patente na sua vestimenta: sob o impecável e impoluto avental branco, usava um elegante terno de casimira, como popularmente se chamava o tecido “cashmere”. Este cobria uma linda camisa de linho cujo colarinho engomado, assim como os punhos também o estavam, era fechado por uma gravata-borboleta. Seus sapatos de bico fino brilhavam e seu relógio de ouro reluzia preso a uma corrente, também de ouro, que se escondia em seu bolso, mas não raramente de lá saía para que o jovem doutor pudesse conferir o horário. Fomos orientados, jovens alunos, a nos posicionar em semicírculo atrás dele, que, como um maestro à frente de seus comandados, também se punha à nossa frente. Determinou à enfermeira para fazer entrar o paciente que seria examinado. Rapidamente pudemos ver um homem, já na casa dos cinquenta anos, trazendo impresso no seu rosto os anos de sofrimento que a vida lhe reservou. Agora, diante de nós, teria que se despir de sua masculinidade, que com muita honra preservou a vida toda. Vestido com uma simples camisola hospitalar, foi colocado em genuflexão e, nesta posição, orou para que Deus terminasse logo aquele sofrimento! Como a provar que, apesar de tudo, não se rendia à vergonha pela qual passava, nenhuma lágrima foi vertida para fora, mas muitas devem ter sido vertidas para dentro do seu coração. Nosso jovem doutor, candidato a uma carreira brilhante, que o tempo confirmou, tanto que até hoje é um respeitadíssimo professor, após as explicações necessárias, ensinar-nos-ia toda a técnica. Assim, posicionou-se à frente do orifício por onde penetraria com seu instrumento para desvendar os mistérios que faziam daquele homem um assíduo freguês de banheiros para neles despojar a incômoda diarreia de que havia muito se queixava. Como uma cortina que, ao se abrir, mostra todo o palco, aquele instrumento gelado e de metal brilhante rapidamente mostrou o canal anal, e, quando ia mostrar o reto, eis que uma súbita e volumosa descarga em jato de um líquido fétido, acastanhado e espumoso, em cheio atingiu aquele que era, até então, um elegante doutor. Suas vestes- agora tingidas de castanho, seus sapatos agora molha-dos por aquele líquido e seu rosto todo sujo nos fizeram compreender que a natureza se vingou e rapidamente fez desaparecer todo orgulho e toda vaidade. Nós, jovens estudantes, tivemos muito mais do que uma aula de proctologia. Tivemos, talvez, naquele instante, nós, futuros médicos, o melhor ensinamento possível: frente ao sofrimento humano, devemos nos despojar do orgulho, da vaidade, do luxo e ter um único sentimento: uma respeitosa compaixão por aqueles que depositam em nós toda a esperança de uma vida melhor! Por tudo isto, o velho e repetido conselho aos alunos: Curar algumas vezes, aliviar quase sempre, consolar sempre!!!! 

O interessante é que o mesmo acidente, embora por modos diferentes, vi acontecer na minha já longa carreira de Pediatra. O que, aliás, ensinou-me a ter sempre muito cuidado ao retirar as fraldas dos bebês quando os examino. Muito perigosos esses bebês…

Mário Santoro Junior
Titular da Academia de Medicina de São Paulo
Titular da Academia Brasileira de Pediatria