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Medicina: Ciência? Arte? Ou nem Ciência nem Arte?

16.12.2016 | Acadêmicos, Gerais

Antonio Carlos Gomes da Silva 

Podemos imaginar que o homem primitivo, em decorrência de sua finitude naturalmente antecedida por males que o desgastavam, teve de se interessar em conhecer suas estruturas, especialmente quando padecente, na tentativa de conseguir a cura de suas doenças ou de, pelo menos, mitigar o seu sofrimento. Assim, aquele que se dedicava a ajudar o próximo em seus padecimentos, exercitava seus dotes de observador, tanto para entender o que se passava no corpo humano quanto para reconhecer e recolher da natureza os meios necessários para recuperar o doente. Nasciam, então, a ciência e a arte na Medicina. 

Quanto ao conteúdo de ciência de que a Medicina é dotada, não é necessário discorrer. 

De outra parte, desde o Juramento de Hipócrates (460-377 a.C.) a Medicina é definida como a arte de curar, termo presente no juramento solenemente pronunciado quando da diplomação dos médicos, adiante reproduzido numa versão simplificada: 

Prometo que, ao exercer a arte de curar, mostrar-me-ei sempre fiel aos preceitos da honestidade, da caridade e da ciência. Penetrando no interior dos lares, meus olhos serão cegos, minha língua calará os segredos que me forem revelados, o que terei como preceito de honra. Nunca me servirei da minha profissão para corromper os costumes ou favorecer o crime. Se eu cumprir este juramento com fidelidade, goze eu para sempre a minha vida e a minha arte com boa reputação entre os homens; se o infringir ou dele me afastar, suceda-me o contrário. 

No exercício da Medicina, a arte não se expressa apenas em um procedimento cirúrgico, mormente na correção de uma grave anomalia, ao permitir que o paciente recupere sua capacidade de convivência diária e a sua autoestima. A arte está presente desde a primeira consulta: na arte de escutar com atenção o relato do mal que aflige o paciente; na arte de interpretar os dados colhidos, interpretação esta alicerçada nos conhecimentos científicos acumulados desde os bancos acadêmicos; e, como corolário, na arte de orientar o paciente para que supere o difícil momento de angústia que lhe tolhe o horizonte. 

Voltemos, então, ao momento da construção dos pilares que sustentarão toda a conduta de uma vida dedicada ao paciente: o do aprendizado na escola médica, fundamental para o fim almejado da arte de curar, resumidamente exposta no parágrafo anterior. 

Condenso este capítulo num único dado: o número limitado de vagas no primeiro ano do curso médico, razão primeira para determinar a qualidade do ensino da Medicina. Sim, porque o ensino da Medicina não comporta massificação. Exatamente porque é artesanal. Aliás, como arte, só poderia ter ensinamento artesanal e individualizado.- 

Artesanal a começar pelo professor qualificado, aquele que tenha entranhado em seu cabedal os princípios fundamentais do ensino médico: o respeito ao doente, a dedicação ao estudo, a atualização permanente e a arte de transmitir os conhecimentos que somente o mestre possui. 

Apesar dos avanços tecnológicos que podem cooperar para um melhor aprendizado, não é possível aprender Medicina sem o doente ou sem o doente que não resistiu à doença, ou seja, o cadáver e seus tecidos. A Medicina não se aprende em bonecos, por mais perfeitos que sejam, pois bonecos não interagem com o estudante, muito menos se comunicam com a alma humana. 

Aqui registro um fato histórico e premonitório. Em 1958, a aula inaugural para a minha turma, a 46º da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), proferida pelo Professor Doutor Alberto Carvalho da Silva, teve como tema “A importância da manutenção das 80 vagas para o 1º ano”. Foi uma sábia advertência, mas não conseguiu impedir a malsinada mas-sificação do ensino médico, atualmente em progressão galopante. 

Percebemos a importância dessa advertência desde o 1º ano. Tivemos a oportunidade de estudar com material didático suficiente, em ambientes adequados e com número de docentes capacitados para esclarecer quaisquer dúvidas. Culminou no 3º ano, quando apreendíamos Semiologia: “torturávamos” os pacientes, seres humanos que sofrem, com a necessária repetição de procedimentos a fim de nos adestrarmos para as próximas etapas: a do diagnóstico das doenças, a orientação ao paciente e, finalmente, a intervenção, quando necessária, para corrigir uma anomalia. 

Assim, nesses detalhes, está resumida a qualidade de um curso de Medicina. O número de alunos por turma visa individualizar o ensino para personalizar o atendimento do doente, aquele que necessita de uma atenção digna que sua condição humana requer e merece ter. 

Infelizmente não é o que temos visto, pois o ensino da Medicina vem sendo desqualificado há décadas, esboroando-se no programa Mais Médicos, criado pelo Governo recém-destituído. Com base na falácia da falta de médicos no Brasil, esse programa interveio no ensino — mais vagas — e no atendimento aos pacientes — médicos cubanos. Convém lembrar que também tentou intervir na atribuição do título de Especialista, recuando diante da reação das entidades representativas dos médicos. 

Esclarecendo, não existe falta de médicos no Brasil. O que há é a má distribuição dos médicos, comprovada pela Demografia Médica de 2015, realizada pelos Conselhos de Medicina, federal e paulista: 1 — o Brasil tem 2,1 médicos por mil habitantes, enquanto os Estados Unidos tem 2,5, o Japão 2,2, o Chile 1,6 e a China 1,5; 2 — os extremos estão no Distrito Federal, com 4,28 e no Maranhão, com 0,79, enquanto São Paulo tem 2,70. 

Quanto ao ensino médico, esse governo criou 71 novas escolas de Medicina no período de 2010 a 2015, desprezando critérios de qualidade, e anunciou mais 11.447 vagas até 2018. 

Quanto aos cubanos, o Governo Brasileiro os dispensou de terem seus conhecimentos aferidos pelo exame de suficiência (Revalida), ao arrepio de leis brasileiras. Qualquer médico formado no exterior deve ser submetido ao Revalida para poder clinicar no Brasil. Completou a série de gravíssimos equívocos com o envio para Cuba de 2/3 dos 114 milhões de reais por mês, correspondentes aos 10 mil reais mensais pagos para 11.400 cubanos. 

Duas constatações: 1 — essa importância, os 114 milhões de reais por mês, custeariam os insumos do Hospital das Clínicas da FMUSP por mais de 3 meses, no mínimo; 2 — para clinicar para a população de baixa renda não é necessário ser aprovado pelo Revalida; basta um jaleco branco. 

Portanto, não é de estranhar que a qualidade do atendimento aos doentes vem sendo depreciada. Com a massificação do ensino, com a má distribuição dos médicos e com um programa de atenção universal à saúde sem financiamento adequado a este propósito, os pacientes são obrigados a enfrentar intermináveis filas de espera. De outra parte, muitos médicos são submetidos ao estresse de atender “multidões” de pacientes, sem tempo sequer para lhes oferecer uma cadeira. 

Com esse modelo de atendimento, deixa de existir o principal fundamento do exercício da Medicina: a atenção a um ser humano que sofre e, por isso, procura o médico em busca de uma palavra de esperança ou de conforto, as bases da arte de respeitar e de reanimar o próximo. 

Nas condições acima descritas não existe nem ciência nem arte. E sombrio é o horizonte. 

Antonio Carlos Gomes da Silva
Secretário-Geral da Academia de Medicina de São Paulo