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O legítimo e o legal

15.02.2018 | Acadêmicos, Gerais

É necessário estabelecer, na política, a distinção entre o legítimo e o legal, distinção esta que nem sempre está clara. Veja-se que até mesmo os dicionaristas não a expressam bem. Tomemos como exemplo o dicionário sempre por todos nós consultado, o Novo Aurélio Século XXI. 

“Legítimo” vem do latim legitimu e tem vários significados: “legal; fundado no direito, na razão ou na justiça; que tem origem na lei; autêntico, genuíno, lídimo; lógico, procedente, concludente”. 

Legal, do latim legale: “de conformidade com a lei”. 

A raiz latina de ambas as palavras é a mesma – lex – mas sempre entendi que não estão situadas no mesmo patamar, no mesmo nível hierárquico. Uma está relacionada com o que é autêntico – com princípios, com valores éticos e morais, do ser humano – temos então o legitimu. A outra é relacionada com decisões que procuram dar forma ao que é legítimo, para que todos possam viver e agir, de modo conjunto: o legale. Na Democracia, os princípios são estabelecidos primeiro, as leis os traduzem depois, determinando as normas para que todos os cidadãos possam orientar suas condutas. 

Antes de continuar, vamos retornar um pouco no tempo, fazendo uma sumária referência ao passado. No século XIX, ainda era recente a fundação da Democracia nos Estados Unidos, a matriz inspiradora dos republicanos brasileiros. Destacava-se que o modelo norte-americano era fundamentado em princípios – poucos e permanentes – que precisavam ser por todos aceitos, pois a obediência a tais princípios é que tornaria legítimo o sistema republicano. 

E como tornar legal o que era legítimo? 

A fundação da República Norte-Americana foi complementada pela criação de suas Câmaras de Representantes, modelo que até hoje foi ininterruptamente preservado. Ao Congresso coube e cabe elaborar as leis que dão normas para o fiel cumprimento dos princípios constitucionais. 

Os Estados Unidos sabem bem que as leis – em certos momentos – precisam ser revistas e atualizadas. Os princípios, não! Princípios não mudam com o tempo, são intocáveis. 

Esta é a síntese da questão: o legítimo é permanente, e o legal, ao se chocar com o legítimo, é passível de ser modificado! 

Voltemos então ao centro de nossa discussão. 

Ao aceitarmos como premissa esta hierarquia de conceitos, concordamos que todos os projetos de lei que forem apresentados, discutidos, votados não podem estar em confronto com os princípios inerentes à Democracia. Não podemos ignorar esta hierarquia conceitual, não podemos aprovar leis que ferem a Democracia em sua base, em seu cerne, em seu coração. 

Vamos dar um exemplo bastante ilustrativo. 

Os princípios democráticos estabelecem a igualdade de todos perante as leis, a Democracia deve oferecer a todos as mesmas oportunidades, para que cada qual se desenvolva de acordo com sua potencialidade. Isto é legítimo! 

Quando os que foram escolhidos – para representar a todos – aprovam lei que oferece vantagens só para uma categoria profissional, portanto, só para alguns, o que realmente aconteceu? Esta lei ignorou o princípio que preserva os legítimos direitos da população, o princípio da igualdade! 

Aí está, o legal confrontou o legítimo! Atingiu no coração o conceito de organização democrática! 

Grande parte dos problemas que hoje enfrentamos decorre da influência corporativista, ao ser aprovada a Constituição de 1988. Foram vários os setores que conseguiram inscrever vantagens corporativas, não extensivas ao conjunto da população. Têm sido inúmeras as decisões que se chocam frontalmente com os legítimos princípios e valores da Democracia. 

Estou convicto da necessidade de se fazer uma revisão da Constituição de 1988. Quando isto vier a ocorrer, a primeira página da nova Constituição precisará expressar claramente os princípios que irão reger o País, os que irão dar legitimidade ao regime democrático. Necessariamente eles deverão ser sempre respeitados, pois serão os alicerces da Democracia brasileira. 

Tudo o que vier depois – as leis que dão normas para a atividade pública e privada – não deverá se chocar com os princípios estabelecidos. Que o legal não ignore e não afronte o legítimo; esta é a referência para as decisões que, desde já, precisam ser urgentemente tomadas em nosso Brasil.

Nelson Guimarães Proença 

Membro da Academia de Medicina de São Paulo. 

Ex-Presidente da Associação Paulista de Medicina. Ex-Presidente da Associação Médica Brasileira.

Fonte: Suplemento Cultural da Revista da APM – Jan/Fev de 2018 nº 298