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O poema e a realidade brasileira

20.06.2017 | Acadêmicos, Gerais

Affonso Renato Meira 

A vontade de escrever me chama uma vez mais para sentar em frente ao mesmo notebook, no qual há alguns poucos anos eu escrevia rimas, com uma inspiração que chegava de outra parte do mundo, ou do além. Na verdade não sei dizer, pois, de um momento para outro, ela, a inspiração, se dissipou, retornando com pouca frequência. Sinto-me triste por não poder mais com facilidade ser um fazedor de rimas como coloquei como subtítulo no livro “Não sou poeta”, porque na verdade nunca fui poeta, ou sequer fazedor de rimas. Nem sei se fui um médico capaz de um momento cuidar de um doente, apesar de como anestesista ter participado em mais de 10.000 cirurgias; o que sei é que depois de ter cursado a pós-graduação em Ciências Sociais fui capaz de entender a sociedade e transformar como paciente a comunidade, não somente um dos seus integrantes. Assim foi possível visualizar a vida por meio das letras. Hoje, ao lado de um negroni, coquetel originário da Itália, país de origem da família de minha mãe, em particular, aos que até agora conseguiram ler essas confissões, digo que é da Calábria, província de Cozensa. Dito isso, estou aberto a fazer declarações que talvez nunca sejam reveladas pois, além de transitar nas letras, caminhei por muitos lustros na Saúde Pública. Vamos a elas. 

A primeira é que, como quer o Governo brasileiro decretar, com mais médicos teremos mais saúde. Pelos meados de 1950 foi quando, pela primeira vez, a sociedade brasileira considerou necessária a presença de mais médicos nas áreas carentes do Brasil, para resolver os problemas da saúde da população. E se criaram Escolas de Medicina. De duas no Estado de São Paulo, há mais de trinta. No Brasil, centenas, sendo hoje mais de duzentas. Mais de mil e quinhentos novos médicos por ano, diplomados e registrados de acordo com a legislação. E os médicos não estão nas áreas carentes. 

A segunda é que com a importação de médicos estrangeiros não será possível obter saúde se não houver investimentos nas condições de vida das populações, as quais são: 

1. Melhorar e corrigir o ambiente em que se situa a casa, que, construída de pau a pique e coberta de sapé, sem água e vaso sanitário dentro da casa, serve como moradia mais propícia aos barbeiros, veiculadores da doença de Chagas, podendo atingir as populações havendo ou não médico na comunidade. 

2. Prover o saneamento básico, ou seja, água potável para consumo dentro da residência, e destino correto das águas servidas, no mínimo com construção de fossas sanitárias. Essas águas contaminadas podem, inclusive, afetar a saúde do médico localizado na comunidade. 

3. Estabelecer um programa de visitadores sanitários, ou o nome que se queira dar, que com uma escolaridade fundamental e um treino de menos de um ano, com visitas periódicas, oriente as famílias para uma possível correta nutrição, para a importância da prática de exercícios físicos, de imunização e de outros hábitos saudáveis, de acordo com as possibilidades da comunidade (programa de Medicina da Família tanto falado, mas não realizado). 

4. Realizar um intenso e amplo programa de imunização e não somente campanhas periódicas, as quais dificilmente atingem em uma semana ou em um período um pouco maior todo o universo desejável, podendo ser realizadas sem necessidade da presença de médico. 

5. Combater os insetos impedindo a formação de logradouros (águas paradas, coleção de estrume ou de outros locais propícios à multiplicação de insetos), para o qual o médico pouco poderá auxiliar. 

Cinco medidas que terão um custo possivelmente menor que a manutenção de um médico e uma eficácia maior que um médico na comunidade. Todavia, não influirão nas eleições, uma vez que um médico representará votos e essas medidas são proposições obrigatórias do governo, que, aliás, não as cumprem. 

Fica a dúvida: será que as autoridades brasileiras responsáveis pela saúde pública ignoram esses conhecimentos ou desejam ganhar a eleição sem se preocupar com a condição de saúde da população? Ou talvez gostem mais de poesia, que nesta ocasião não me vem na inspiração?

Affonso Renato Meira 

Membro Emérito da Academia de Medicina de São Paulo e 

Membro Correspondente da Academia Itanhaense de Letras