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Quando a Vida Imita a Medicina

13.09.2017 | Acadêmicos, Gerais

Aquele era um dia qualquer, sem nada de especial, como tantos outros. A vida, naquele longínquo ano da década de 80, seguia inexorável na busca do destino final de cada um. Quem, naquele dia, poderia imaginar que passado tantos anos estaria hoje aqui para rememorar os fatos que a seguir relato, prezado leitor? 

Ali estava ele naquela manhã, postado na porta do Departamento onde eu trabalhava. Impossível não notar sua presença, pois pela sua postura altiva e afetada; e por seus finos trajes, em muito destoava dos colaboradores daquela unidade, bem como dos usuários de nosso sistema público de saúde que, pelo motivo que cada um poderia explicar, ali estavam na busca de algo que poderia contemplar suas expectativas. Como disse impossível não notá-lo. Mostrava o semblante dos que bem nasceram, como se diz, em berço de ouro. Já de meia idade, com grossos bigodes e a calvície um pouco avançada, tinha cabelos pretos e brilhantes, tratados diariamente com uso de cosméticos caros. Vestia-se como dissemos, de forma elegante. Seu paletó azul com botões dourados era do tipo que se denominava à época, jaquetão. 

Combinava maravilhosamente bem com o lenço que enrolava ao seu pescoço, que, como o jaquetão, também era azul. Sob este vestia uma camisa branca de seda. Um lenço menor e da mesma cor daquele do pescoço estava cuidadosamente dobrado e mostrava-se no bolsinho superior do jaquetão. Complementava o figurino uma calça cinza clara que descia até os sapatos, estes bastante lustrosos, com bicos finos e sola de couro. Eram certamente de couro alemão. Seu cenho não deixava dúvidas que ali não estava para uma visita de cortesia. Antes, deixava a certeza de que algo grave havia ocorrido. Como estava num departamento de saúde, as hipóteses logo formuladas pelos que ali estavam era a de que algum infortúnio tivesse acontecido com alguém que deveria lhe ser muito caro. Outros suspeitavam que fosse uma figura política importante e que viera solicitar favores para algum apadrinhado ou para algum parente. Talvez uma nomeação ou ainda uma mudança de local de trabalho. Ou seria um importante auditor a procura de algum desvio ético? 

Todo mistério veio a se dissipar coma chegada de nosso superintendente que era por ofício médico. Ao adentrar a repartição, percebendo a figura que ali se postava, convido-o à sua sala. No entanto, o homem não quis perder tempo em aceitar gentilezas, que de resto não lhes interessava e passou a acusar a todos que ali trabalhavam de irresponsáveis, exigindo imediata reparação pela chacina que havia ocorrido. 

Antes de avançarmos na descoberta que havíamos realizado, ao presenciar a discussão, deve ser observado que aquele homem morava numa linda mansão, provavelmente construída na década de 50, em estilo normando. O terreno, que era lindeiro pelos fundos com o edifício onde trabalhávamos, tinha, no quintal, uma enorme piscina transformada há alguns anos num grande aquário para criação de peixes. Ali brilhavam lindas carpas. Dizia-se no bairro que nosso personagem era devoto de nosso Senhor e sabia que em grego, peixe se escreve “ICHTHYS” – um acróstico cujas palavras iniciais correspondem a “Iesoûs Christòs Hyos Soter”, ou seja, “Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador”. Desta palavra grega originou-se a palavra ictiologia ou ciência que estuda os peixes. E ainda ela foi utilizada como um sinal secreto para que os cristãos se reconhecessem entre os pagãos. Ainda hoje o papa usa um anel denominado “ANULUS PISCATORIS”, um símbolo que remonta à abundante pescaria realizada pelo Apóstolo Pedro, relatada por Lucas. 

Portanto, nosso personagem considerava aquela piscina um aquário santo. Aliás, no início, as piscinas designavam grandes tanques onde eram criados peixes, nome que só veio a designar o que hoje entendemos como piscina quando os grandes tanques públicos para banho na Roma antiga passaram a ser denominados de piscina. 

Vejam caros leitores, nosso personagem, homem abastado e culto, tinha ali o que lhe permitia estar próximo do sagrado, e agora podemos entender a raiva que lhe assolou quando viu o que chamou de chacina. 

O prédio onde tralhávamos não era novo, pois no passado ali funcionou uma maternidade. Tinha cerca de oito ou dez andares, já não me recordo. Era servido por um único elevador. E uma curiosidade para todos que ali trabalhavam. Com frequência havia necessidade de substituir o piso do elevador, apodrecido pela água que ali se acumulava. Este fato, até então, era atribuído a uma mina de água que se acreditava ali havia. Mina que, embora por mais que fosse pesquisada, nunca foi encontrada. Na época dos fatos aqui relatados, o verão foi particularmente quente e, numerosos insetos proliferavam pelo prédio. Nosso superintendente, que, como dissemos era médico e também um diligente administrador, determinou que fosse realizado uma desinsetização no edifício, o que prontamente foi realizado em um sábado. Soube-se, então, que no domingo, logo a seguir a essa providência administrativa, todas as carpas estavam mortas, uma verdadeira chacina. Nosso personagem há muito detentor do segredo que nos atormentava há anos – o problema do acúmulo de água no poço do elevador – uma vez que aquela propriedade no passado lhe pertencera, logo suspeitou da causa do óbito de suas carpas e que tanto significado tinha para ele. 

Nosso superintendente ao tomar conhecimento da matança dos peixes – verdadeiro crime ambiental – e de sua causa – intoxicação pelo inseticida usado na desinsetização –, como brilhante médico que era logo suspeitou da causa: fístula elevador-piscina (para os leitores não médicos, fístula é um canal patológico que cria uma comunicação entre duas vísceras ou entre uma víscera e a pele). 

Não se pode deixar de pensar como a vida imita a Medicina, ou seria justamente o contrário?

Mário Santoro Junior 

Titular da cadeira nº 69.