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Temporada de enfermaria do retirante catador de latinhas

19.12.2013 | Gerais

Bruna Del´Acqua Cassão 

Arary da Cruz Tiriba 

Bom? Morar na fazenda com os avós maternos? Viver no campo, junto à criação de gado e aves de terreiro, aroma de capim, cardápio de milho, feijão, arroz, mandioca, ovo de codorna, sopa — beterraba, repolho —, pão preto, vinho colonial… Fresquinhos, tudo ao natural! 

Até os 10 anos seu pequeno mundo. Hoje, 38 já cumpridos; na aparência, não mais do que 30; simpático, extroverti­do, bom-papo, interação excelente, saudável na aparência, espargindo felicidade, muito à vontade, sem se intimidar nem um pouco com a roda de incrédulos doutorandos e de residentes de medicina. Pronta resposta ao questionário; perguntas para tantos — íntimas, embaraçosas —, não para ele. Insatisfação, apenas, por não desfrutar do cigarro de palha. 

Retratado o retirante! Banido pela seca? Qual! O neto de poloneses deixou para trás o próspero sudoeste do Paraná aos 10 anos! Adeus ao polo de produção avícola, o frango da Sadia! Daí para permanências transitórias… Curitiba, Foz do Iguaçu, Mato Grosso, Goiás, Santa Catarina… Até adquirir cidadania pauliceense — domicílio: via pública —, há 13 anos. 

— Por que São Paulo? 

Sem hesitação: 

— Fascinação! Adesão à república nova, Cracolândia Já! Incorporação a tribo. Direito à cocaína, crack…, oral…, inalatória…, por agulha… Novas drogas! 

Sonho realizado. Novo capítulo. Morador de rua assumido, carrocinha — tração humana —, para catar trastes e latinhas. Capital de giro? Não. “Giro de capitalização” para adquirir a essência da vida. 

Expandiu a territorialidade. Da Luz para Lapa, Barra Funda, Pinheiros, Vila Mariana, Moema. Por que a seleção desses distritos? 

— Onde se vive bem, pessoas mais atenciosas nesses bairros! [Sociólogo das calçadas urbanas.] 

— Tomo banho no albergue da Lapa onde corto a barba e troco de roupa uma vez por semana. Assisto à Missa dos moradores de rua todas as sextas-feiras. Não sinto falta da família. Compareço diariamente à Cracolândia. E sou positivo! Não mudo de vida. Não aceito deixar a droga. 

Comunicação: interlocução fluente, sem embaraço, bom humor, sorridente, em contraste com o somatório mórbido. Quer saber? 

SIDA há 24 anos! Em parceria: plus tuberculose disseminada! plus neurotoxoplasmose! plus dermatofitose! 

— Adquiri tuberculose na Cracolândia. Lá está cheio. Gente morrendo disso… 

Ah! esplenectomizado há 3 anos por espancamento dos Billies! 

Me tratou mal eu reajo na hora, sou galo de briga, igual à rinha da terra onde nasci. [Explicado como teve estourado o baço, e quebrados: costelas, mão, braço, clavícula]

É tudo?! No aguardo do laboratório de infectologia para adição de outros tantos males… 

Perguntado ao neto de poloneses se admirava certo compositor [“Chopen”, como se pronuncia no solo ancestral, “Chopan”, comme se parle en France] autor de sonatas e marcha… [Psiu! baixinho pra não adverti-lo!] marcha… f-ú-n-e-b-r-e… 

Entusiástica resposta: 

— Meu avô sempre falava desse nome parecido com chope. Eu também gosto! Demais da música! Tonico e Tinoco! Música sertaneja…. 

Bruna Del´Acqua Cassão 

Interno(a) da Disciplina de Doenças Infecciosas e Parasitárias do Departamento de Medicina da UNIFESP/EPM 

Arary da Cruz Tiriba 

Professor Titular aposentado, em atuação voluntária na UNIFESP/EPM