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Doenças tratáveis continuam a matar

19.07.2019 | Acadêmicos, Gerais

Por negligência desde a graduação da área médica até os programas de saúde pública 

LEONTINA DA CONCEIÇÃO MARGARIDO*, O Estado de S.Paulo 

19 de julho de 2019 | 03h00

Cerca de 1,5 bilhão de pessoas no mundo (Américas, África, Ásia) ainda convivem com doenças “milenares”, infectocontagiosas, infecciosas, também, denominadas negligenciadas, que causam incapacidades físicas, psicoemocionais, sociais e até morte. Desde a mais remota Antiguidade acometem todas as classes sociais, ricos e pobres. Podem ser prevenidas e quando o diagnóstico e o tratamento são precoces se impede a evolução para sérias complicações. 

Muitas dessas “doenças”, como a moléstia de Hansen (hanseníase ou lepra), já citada no Egito antigo 3 mil anos antes de Cristo, tuberculose, sífilis e malária, persistem ainda hoje por negligências desde a graduação da área médica até dos programas de saúde pública. 

Recentemente, correlacionaram-se “doenças negligenciadas” à pobreza. Discordamos, pois sempre acometeram “nobres e plebeus”. Vários reis europeus tiveram essas moléstias. Também há desinteresse de alguns profissionais da saúde, considerando erroneamente que esses doentes não irão aos seus consultórios. 

Para exemplificar, a moléstia de Hansen (MH), que deve ser conhecida por todas as especialidades médicas, sem exceção, incluindo dentistas, inicia-se muitas vezes na infância, nos nervos periféricos (com formigamento, dormência), também acomete músculos (atrofias), articulações, pele, olhos, nariz, boca, polpa dentária, gengiva, fígado, baço, genitais, testículos, etc., exceto o sistema nervoso central. Com melhor qualificação “eliminaremos” a MH (menos de 1 doente para 100 mil habitantes), cumprindo proposta da Organização Mundial de Saúde ( OMS, 1991), mas não atingida até hoje. Cerca de 90% da população é resistente geneticamente. 

A OMS afirma que são detectados 200 mil novos doentes de MH por ano, no mundo; e a maioria deles está no Brasil, na Índia e na Indonésia. Hoje o Brasil tem a maior incidência de MH do mundo e 93% dos doentes americanos. Em 2017 foram diagnosticados 12,9 doentes novos em 100 mil habitantes. Os Estados em pior situação são Mato Grosso, Tocantins, Maranhão (a maioria, em menores de 15 anos), Pará, e Piauí. O Brasil de hoje vive situação similar à da Europa na Idade Média, mas por falta de diagnóstico e tratamento precoces, pois existe tratamento eficaz desde 1941. 

Há escolas na área da saúde que não administram treinamento teórico e prático adequado aos graduandos e pós-graduandos. Consideramos fundamental e urgente o aumento do ensino, obrigatório e supervisionado pelos Ministérios da Educação (MEC) e da Saúde (MS), para todas as especialidades. 

Segundo a OMS, 80% dos doentes com tuberculose estão em 22 países do mundo. O Brasil ocupa a 16.ª posição; em 2010 morreram mais doentes por tuberculose (sem aids) que por dengue. 

A partir de 1495 a sífilis foi grande problema na Europa; declinou a partir da descoberta da penicilina (Fleming, 1928), hoje ainda eficaz. A OMS estima 12 milhões de casos novos por ano no mundo. Desde 2006 o Brasil vive grave situação de sífilis congênita, com curva epidemiológica ascendente, atingindo níveis assustadores desde 2015; há alto índice de mortalidade de recém-nascidos; e falta penicilina em muitas unidades públicas. 

Mais de 99% dos casos da milenar malária (paludismo), complexo problema ecológico, social e político, ocorrem na Amazônia. 

As doenças relacionadas às precárias condições de vida são febre amarela, leishmaniose – cutânea, visceral ou mucocutânea –, doença de Chagas, esquistossomose, tracoma e dengue. Moléstias não milenares, mas também importantes e transmitidas por mosquitos, exigem aumento do “fumacê” nas áreas endêmicas, para combater os mosquitos. 

O Ministério da Saúde reconheceu a insuficiência do País no controle das endemias para atingir as metas da OMS. Em 2014 o Ministério da Educação reconheceu que 17,5% das escolas médicas brasileiras têm Conceito Preliminar de Cursos (CPC) muito baixo (nota 2). Noutros países seriam fechadas por falta de condições para formar médicos desejáveis. Mas esses cursos estão mantidos. O cenário piora pela deficiência de vagas para residência médica. Assim, surgem duas medicinas: uma, bem qualificada para a minoria e outra, para a maioria das pessoas – agredindo a desejável assistência médica de qualidade e universal. 

O MEC deve normatizar e supervisionar os conteúdos programáticos e projetos pedagógicos das escolas médicas. Há que estabelecer políticas públicas de educação: formação qualificada dos profissionais da saúde, aumento do ensino teórico e prático das endemias, obrigatório, de preferência, integrado com o Sistema Único de Saúde (SUS), com supervisão continuada. Que o MEC impeça o funcionamento de escolas com CPC muito baixo. 

Há importante deficiência de vacinas e medicamentos, também, no Brasil. Está comprovado que 1) vacinas, a exemplo da BCG, protegem a população contra tuberculose, MH e outras micobacterioses; 2) medicações, como a penicilina, são importantes armas contra a sífilis, mas faltam em várias regiões.

Há que interferir nos programas de saúde pública. Quando esses eixos estiverem bem coordenados, a saúde das pessoas será melhor e os problemas judiciais advindos de erros profissionais terão significativa redução. Os meios de comunicação, falados e escritos, deveriam orientar a população para reconhecerem os sinais precoces dessas doenças, a fim de mitigar os alarmantes índices do País. 

O controle dessas moléstias foi estabelecido como prioridade pela ONU. Para o período 2015-2030 a OMS propõe investimento representado por apenas 0,1% da atual despesa nacional com a saúde em países afetados, de baixa e média rendas. 

A sociedade pode e deve cobrar ou exigir essas ações, pois é dever do Estado e direito constitucional de toda sociedade ter medicina de qualidade.

*LEONTINA DA CONCEIÇÃO MARGARIDO É MÉDICA DERMATOLOGISTA, PROFESSORA DOUTORA NO HCFMUSP E NA UMC; MEMBRO TITULAR DA ACADEMIA DE MEDICINA DE SÃO PAULO