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Imprevisto melancólico

16.05.2017 | Acadêmicos, Gerais

Vicente Amato Neto

Esta é uma peripécia melancólica. Relatarei para marcar ocorrências que comumente vigoravam e ainda persistem no âmbito da saúde pública aqui no Brasil. 

Deparei-me com grosseiro e triste atendimento médico, sem dúvida retratando o descaso com infelizes doentes. 

Pouco tempo depois de ter sido diplomado e mantendo minha escolha pela clínica de doenças infecciosas e parasitárias fui laborar em serviço universitário, especializado. 

Nesse local, raríssimos colegas realizavam visitas ou estudos em áreas não urbanas, apesar de fazerem parte de núcleos que frequentemente colocam o rótulo de tropicais nos títulos. Apelidei tais companheiros de profissão de tropicalistas do asfalto. 

Quando fatos e circunstâncias suscitavam construtivo interesse, participei de visitas a regiões que seriam melhores para eu conhecer, em virtude de diversos motivos, como avaliar presencionalmente condições nas quais prosperam causas de enfermidades e basear com objetividade fatores tidos como favorecedores. 

Entre outras programações, estive numa desenvolvida em São Paulo. Acabara de ser construída uma estrada rodoviária denominada Via Anhanguera, que passou por parte de terrenos pouco aproveitados, servindo para fins singelos e até simplórios. Neles eram encontradas moradias de caráter precário ou mesmo de adobe. Eu e companheiros dedicados à Parasitologia médica resolvemos apreciar a área referida, justificando diligência para quiçá ver ilações com a doença de Chagas, em virtude da presença de malfadadas residências, aptas a albergar triatomíneos: insetos que carregam o protozoário Trypanosoma cruzi, ocasionador do mal referido. Eis o grupo: Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Miya Awazu Pereira da Silva, Rubens Campos e eu, que ganhei a honra de partícipe. 

Aos poucos avançamos a Jundiaí, indo cerca de quinhentos metros de ambos os lados da estrada. Um jovem conhecedor de bom pedaço de tudo aquilo ajudou-nos. Colocávamos um pouco de inseticida em pó nas frestas e aguardávamos a eventual chegada de barbeiros. Logicamente, alertávamos os habitantes a propósito de cuidados gerais. 

Capturamos razoável quantidades de insetos. Todos eram Triatoma infestans, espécie que se adapta com habilidade a péssimas vivendas. No laboratório não vimos o T. cruzi em nenhum. Nosso empreendimento serviu para evidenciar perigo de infecção pelo protozoário e salientou a proximidade com a capital, plena de populações paupérrimas. Avanços demoraram. Vieram. Paulatinamente o aspecto mudou bastante. Construções de formas variadas, instalações de sedes de empresas, população aumentada, lautos meios de transporte e vida social humanizada, com nível prosperado, aprimoraram a paisagem. 

O episódio descrito por mim contém peripécia no íntimo dele. Imprevisto e, sem dúvida, triste, inspiradora de judiciosos comentários. Durante nossa verificação na região já especificada chegamos a um barracão, quase todo construído com madeira. Inexistia indicação do que representava. Entramos e sem demora notamos que ali colocaram seis camas. Quase todas ocupadas ou deixadas por circunstâncias ocasionais. Um senhor, modestamente vestido veio falar conosco e deu informações. O Hospital das Clínicas pede para acolher pessoas com liberação do nosocômio e aguardando soluções. Igualmente solicita o abrigo e contorna dificuldades enquanto certas questões não chegam a decisões. 

Agora chego a uma peripécia. Enorme. Um dos encostados no amparo irreal era meu conhecido. Cuidei dele no hopital. Com gravíssimo achaque incurável, pediu-me para providenciar maneira de voltar para a Bahia. Apelo taciturno, realístico e compreensível. Fiz o que pude e a encarregada do serviço social declarou solução, com ajuda. Destino da viagem: varanda vulgar, interpretada como provisória, sem previsão para a caridade. 

Apesar de relativamente jovem na época, incorporei no bojo de minhas decepções mais essa. Cresceu a impressão de que projetos elogiáveis continuam faltando neste querido País, incluindo melhora do perpetuado castigo para a saúde pública. 

Vicente Amato Neto

Professor universitário, com especialização em clínica de doenças infecciosas e parasitárias