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Algumas Considerações a Respeito do I Colóquio Acadêmico Sobre Ensino Médico – FBAM, CFM e AMSP

16.03.2018 | Gerais

A iniciativa de promover este debate merece, sem dúvida, nosso reconhecimento como uma contribuição altamente significativa para a análise de um dos assuntos mais polêmicos dos dias atuais no Brasil. Neste evento foram abordados temas voltados tanto para o ensino, em si, como para a avaliação dos graduandos e para a análise do perfil das escolas de medicina brasileiras. 

Como é de conhecimento de todos, estamos vivendo um momento na história da humanidade em que a divulgação de informações e de desinformações está crescendo de forma inimaginável. Este verdadeiro tsunami, movido por interesses de vários setores da indústria, de serviços voltados para a prestação de assistência à saúde, e, infelizmente, também de alguns profissionais de saúde, tem modificado substancialmente o perfil da assistência, aumentando dramaticamente seus custos e comprometendo sua qualidade. A relação “médico/paciente”, fulcro de nossa profissão foi corrompida a ponto de que, nos dias atuais, a avaliação clínica, que era o cerne no passado, passou a ver vista, por parte do “usuário”, entenda-se, pelo paciente (ou “impaciente”…), como “complementar” aos exames de imagem e de laboratório. 

Ao mesmo tempo, a educação médica foi se deteriorando progressivamente por vários motivos. Um deles, talvez o mais importante, foi a abertura indiscriminada de escolas médicas, ou de “pseudoescolas” médicas. Tal iniciativa, movida, mais uma vez, por interesses questionáveis, sejam econômicos ou políticos, transformou o Brasil em um dos países do mundo com o maior número de escolas. Entretanto, em sua maioria, tais “pseudoescolas” não têm condições básicas para o ensino, não tem docentes qualificados e não tem hospitais escola. 

Não foi por acaso que há um século, nos Estados Unidos, foi promovida uma análise das escolas médicas existentes (Abraham Flexner – Medical Education in the United States and Canada: A Report to the Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching New York: The Carnegie Foundation; 1910). A conclusão foi que “a existência de muitas destas escolas médicas desnecessárias e inadequadas tem sido defendida pelo argumento de que uma escola médica de baixo padrão é justificada nos interesses da população carente… mas, esta afirmação não é sincera, e, em realidade, é um argumento usado em defesa das escolas de baixo padrão”, e terminou alertando para o fato de que “a cidade pequena necessita dos melhores e não dos piores médicos disponíveis. De fato, o médico rural só pode confiar em seus próprios conhecimentos: não pode recorrer a especialistas, a expertos, a enfermeiros. O bem-estar de seu doente depende apenas de sua competência, de seu conhecimento e de sua versatilidade.” 

Para complicar mais um pouco este caos, o número de vagas de residência médica oferecidas anualmente é menos da metade do número de graduados. Em outras palavras, mais da metade dos alunos que se formam nas escolas e nas “pseudoescolas” recebem um diploma que os habilita ao exercício da profissão, ainda que estejam totalmente despreparados e, obviamente, tentam substituir seu desconhecimento clínico através do abuso de exames e de medicamentos. 

Nos dias atuais é extremamente comum que exames de laboratório ou de imagem sejam repetidos em curtos intervalos, quando não diariamente, e que o diagnóstico seja baseado em “achados de exames”, induzindo o médico inexperiente e inseguro a prescrever medicamentos de indicação totalmente descabida. O resultado comum é que os usuários se transformem em “dependentes químicos” e passem a ter sintomas devidos aos efeitos adversos inerentes ao uso dos medicamentos, sintomas estes que induzem o profissional de saúde a prescrever mais medicamentos, formando um círculo vicioso altamente prejudicial. Não é por acaso que a indústria farmacêutica é uma das mais rentáveis do mundo atual. 

Antigamente, tratavam-se os pacientes. Nos dias atuais “tratam-se” doenças, sintomas, achados de exames. Por outro lado, a quebra da relação médico/paciente, faz com que o paciente impaciente não tenha mais seu “conselheiro” de confiança, capaz de orientá-lo e de tranquilizá-lo. Assim, quando tem qualquer sintoma consulta o Dr. Google; levanta hipóteses diagnósticas descabidas; procura o pronto-socorro mais próximo de casa; é atendido por um jovem médico totalmente despreparado que, para satisfazer a instituição onde trabalha, para atender as exigências do impaciente e para garantir sua própria segurança, pede exames; prescreve medicamentos (quanto mais novos, melhor…) e, não raramente, interna o impaciente, de preferência em uma UTI, onde ele será visto cada dia por um médico diferente que, em atenção à logística acima exemplificada, vai continuar pedindo exames e prescrevendo medicamentos, de acordo com “protocolos”. Não é por acaso que todos os hospitais estão crescendo de forma impressionante. 

Aliás, a adoção sistemática e universal de protocolos é, em meu modo de ver, outra conduta potencialmente prejudicial. De fato, ao adotar de forma cega um protocolo, o médico esquece que cada paciente é “um” paciente, com características físicas, psicológicas, fisiológicas, genômicas totalmente peculiares. Os protocolos podem ser usados como um roteiro genérico, mas não podem substituir a avaliação clínica individualizada. Não se pode pretender que o uso de protocolos compense e substitua a falta de preparo dos profissionais envolvidos. Se assim fosse, os médicos seriam profissionais totalmente desnecessários. E não esqueçam que muitos dos protocolos divulgados e adotados indiscriminadamente são elaborados por entidades internacionais quem usam critérios inviáveis em nosso país e, não raramente, são movidas, também, por interesses econômicos ou de promoção pessoal ou institucional. 

Poderia, aqui, discutir uma série de outros aspectos, como o papel do “ensino a distância”, a assim denominada “indução de necessidades”, o “disease mongering” (ou a comercialização das doenças); o impacto da “defensive medicine” (medicina defensiva), que eu denomino “offensive medicine” e “expensive medicine”; e vários outros tópicos entre os quais as consequências funestas da fragmentação exagerada da assistência médica, da falta de comunicação entre os médicos envolvidos e da participação crescente de outros profissionais de saúde que adotam posturas que, no passado, eram de responsabilidade exclusiva do médico. Tais considerações podem parecer fruto de uma fantasia, mas estou convencido que se fizermos uma investigação entre os médicos mais experientes (para não dizer “mais idosos”…), a maioria concordará com elas. 

Ao encerrar estas palavras, desejo ressaltar a importância do treinamento dos alunos em aspectos básicos de técnica cirúrgica. Não raramente o médico recémformado inicia sua vida profissional trabalhando em serviços de emergência. É fundamental, pois, que ele tenha um treinamento técnico básico, suficiente para que possa oferecer uma assistência correta aos pacientes. A adoção de treinamento por métodos de simulação, ainda que possa ser útil, não substitui o treinamento em animais de experimento. 

É óbvio que o uso de animais desperta várias dúvidas, particularmente de natureza ética e econômica. É importante, por estas razões, lembrar que existem protocolos que já foram submetidos ao Ministério Público Federal, através dos quais as disciplinas de técnica cirúrgica assumem a responsabilidade de tratar os animais de forma ética, submetendo-os a medidas farmacológicas de pré-anestesia e de anestesia antes de iniciar qualquer procedimento cirúrgico, e sacrificando-os, ao término do procedimento, sob anestesia geral. Ainda que existam custos econômicos inerentes a esta vertente educacional, é óbvio que ela contribui de forma inquestionável para a formação dos estudantes; e, ainda que resulte no sacrifício de animais, seguramente permitirá que muitas vidas humanas sejam salvas. 

Termino esta enxurrada de considerações apresentando minhas felicitações às entidades que promoveram este colóquio, na esperança que novos debates sejam promovidos e que sejam divulgados amplamente tanto às associações profissionais e às entidades públicas responsáveis pela assistência à saúde como ao grande público. 

Dario Birolini
Membro honorário