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Adib Jaetene – Uma vida a serviço da Comunidade, por Acad. Nelson Guimarães Proença

01.02.2010 | Tertúlias

Em outubro de 2009, o Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE) e o jornal O Estado de S. Paulo conferiram ao Professor Adib Jatene o “Prêmio Professor Emérito de 2009”, simbolizado em ato solene com a entrega do “Troféu Guerreiro da Educação”. Como todas as demais homenagens que o Professor Jatene já recebeu, também esta foi amplamente merecida. Conheço, convivo, admiro e respeito Adib Jatene desde o tempo em que fomos contemporâneos na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Convidado para o evento, não me foi possível compa- recer. Apesar disso, ao receber o convite, recordei alguns episódios que marcaram alguns de nossos contatos pessoais em diferentes épocas. Percebi que, puxando pela memória, havia caminhado por quase seis décadas de nossas vidas. Para compartilhar esses momentos, acho que serei por ele perdoado se tomar uma carona na homenagem que lhe foi prestada. Penso que Jatene não vai me negar essa carona.

1951

Ingressei na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em fevereiro 1951.

Ao mesmo tempo em que vivíamos as agruras do trote, éramos procurados pelos veteranos que praticavam espor- tes na Associação Atlética do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC). Queriam saber de nossa aptidão esportiva, para fazermos nossa iniciação na Atlética. Para mim, tocou a participação no futebol e no atletismo.

O foco das preocupações, já no primeiro semestre, era a preparação para enfrentarmos o Mackenzie, na famosa Mac

Med, que seria realizada no final de setembro. A Atlética havia conseguido permissão do Clube Atlético Paulistano para que pudéssemos realizar o treinamento em suas ins- talações. E lá fomos nós, calouros, para sermos testados pelos veteranos.

Em um fim de tarde de maio, já estávamos terminando nosso treinamento, quando adentrou a pista de atletismo um esportista enorme. Pelo menos nos pareceu enorme, em seus quase um metro e noventa, com postura empertigada que o fazia ainda maior. Massa muscular de fazer inveja a nós, calouros, que nos apresentávamos como candidatos a atletas. Soubemos, depois, que toda aquela aptidão física para o esporte era cultivada não só nas pistas de atletismo mas também na prática do remo, ao tempo em que Rio Tietê era uma raia olímpica de qualidade. O recém-chegado deu algumas voltas na pista, para esquentar, e, em seguida — recordo-me bem —, tirou tempo nos mil metros rasos. Fantástico, não deixava dúvida de que iria ganhar a prova na Mac Med. Ganhou! De quebra, ganhou também sua prova no remo, o iole a dois, em que remava tendo por companheiro Miguel Zuppo.

Foi assim que conheci Adib Jatene, o esportista.

1956

A turma de calouros de 1951 iria se formar em 1956. Quando estávamos no quinto ano, portanto em 1955, fomos procurados por Murilo Viotti, que era o Chefe dos Residentes do Hospital das Clínicas. Sua ideia, que já contava com o apoio dos órgãos de direção da Faculdade e do HC,

era transformar o sexto ano em um internato obrigatório. De certa forma, estaríamos antecipando o que já se fazia na Residência Médica. E era para esta que nos preparávamos. Nossa turma aderiu entusiasticamente à proposta e partici- pou de todas as etapas do processo, até sua aprovação final, pelo Ministério de Educação e Cultura. Fomos, portanto, uma turma de pioneiros, trazendo essa inovação para o curso médico. O internato depois se consagrou, sendo adotado em todas as demais Faculdades de Medicina do País.

Meus primeiros meses de internato foram passados nas enfermarias de Cirurgia, iniciando pela área de Tórax. E isso ocorreu exatamente quando estavam sendo praticadas as primeiras intervenções sobre a válvula mitral. Tínhamos uma excelente equipe de cirurgiões, na qual se destacava a figura de Euryclides de Jesus Zerbini. Contudo, não bastava a habilidade manual do operador. O êxito cirúrgico depen-

dia, e muito, da equipe de apoio. E nesta se destacava o jovem cirurgião Adib Jatene, há pouco saído da Residência Médica, que já era reconhecido não só por sua aptidão mas também por sua criatividade. Imaginava aperfeiçoamentos dos equipamentos e propunha novas soluções, contribuindo decisivamente para o aprimoramento da técnica cirúrgica em intervenções cardíacas. Primeiro no Hospital das Clíni- cas; depois, no Hospital Dante Pazzanezi, tornou-se figura exponencial no campo da Cirurgia Cardíaca.

Foi em 1956 que conheci Adib Jatene como cirurgião cardíaco e já se antevia, então, um futuro brilhante nessa área.

1979

Em outubro de 1978 tivemos eleição, indireta, para es- colher o novo Governador de São Paulo. Surpreendendo muitos, Laudo Natel foi derrotado por alguém que era emergente no cenário político: Paulo Maluf. Ao novo Go- vernador coube designar seu Secretariado. Talvez para apagar o incêndio que provocara — e desfazer ressentimentos —, no início de 1979 Maluf nomeou alguns nomes de prestígio para ocupar diversos setores da administração pública. Para a Secretaria da Saúde, convidou Adib Jatene.

Recordo-me de um episódio que se passou no dia seguinte ao ser dada essa notícia pelos jornais. Eu estava atravessando o jardim da Santa Casa de São Paulo, quando cruzei com um de nossos professores, José da Silva Guedes. Ele era o titular do Departamento de Medicina Social da nossa Faculdade de Ciências Médicas. A vocação do Professor Guedes como administrador da saúde já tinha sido reconhecida e se esten- dia para fora dos muros da Santa Casa de São Paulo. Guedes tinha participação direta na administração pública, seja por si, seja por seus assistentes, ou, ainda, por seus residentes de Medicina Social, que todos os anos formava. No quadriê- nio 1975-1978, Guedes esteve diretamente ligado ao então Secretário da Saúde de São Paulo, o Professor Walter Leser (este oriundo da Escola Paulista de Medicina). Recorde-se que, na época, outro membro do grupo de Medicina Social da Santa Casa, José Carlos Seixas, era nada menos do que o secretário-geral do Ministério da Saúde. O ministro era o Dr. Paulo de Almeida Machado. Portanto, com a colaboração de quadros do Departamento de Medicina Social da Faculdade da Santa Casa, havia-se caminhado bastante, no quatriênio 1975-1978, na área de Saúde Pública.

Nesse encontro ocasional no jardim da Santa Casa, para- mos para conversar um pouco, Guedes e eu. Que rumos o novo governo iria tomar? Guedes manifestou sua preocu- pação sobre o que poderia ocorrer no âmbito da Secretaria da Saúde. Os técnicos que davam apoio ao secretário Walter Leser eram, na maioria, pessoas de vocação socialista, que se colocavam na esquerda do espectro político. As infor- mações de que dispunham sobre o recém-indicado, Adib Jatene, eram sobre uma suposta formação extremamente conservadora, direitista mesmo. Anteviam um convívio difícil, talvez conflituoso.

Nesse dia, eu tive a oportunidade de desfazer o que chamei de grande equívoco. Estavam com uma imagem totalmente errônea de Jatene. Recordei para Guedes os anos em que fora contemporâneo de Jatene na faculdade. Naquele início dos anos 1950, o movimento estudantil era muito partici- pante da vida pública nacional. Nas faculdades existia um movimento socialista importante, de vários matizes, ao qual eu me associara. Havia também a Juventude Universitária Católica (JUC), que crescia rapidamente e ocupava espaços cada vez mais amplos. E ainda uma forte militância con- servadora, ligada à União Democrática Nacional (UDN) e a Carlos Lacerda. Pois bem, dizia eu a Guedes, em todas as campanhas que fizemos, nos manifestos que nós da esquerda lançávamos, sempre contávamos com a assinatura de apoio de Jatene. Embora ele não tivesse qualquer vocação para ser um ativista, um militante, nunca adotara sequer uma única posição mais conservadora.

Eu disse a Guedes, o que posteriormente se confirmou, que Jatene logo se destacaria como um dos melhores secretários de saúde que São Paulo já tivera. O tempo se encarregou de confirmar, completamente, o juízo que eu acabara de fazer.

O Secretário Adib Jatene desenvolveu, à frente da Secretaria da Saú- de, uma das mais criativas e produtivas gestões da Coisa Pública.

1983

Em agosto de 1981, fui eleito para a Presidência da As- sociação Paulista de Medicina, tomando posse do cargo em outubro desse mesmo ano. No correr de 1982, fui procurado por Adib Jatene e o recebi na sala da presidência.

Contou-me que havia sido aberto concurso para preenchimento de vaga de professor titular no Departamento de Cirurgia da FMUSP, ao qual pretendia concorrer. Mostrou-me seu impressionante currículo de atividades docentes, profissionais e públicas, parte do qual já era de meu conhecimento. Explicou-me que, por ter feito toda a sua carreira fora dos quadros da Universidade de São Paulo, especifica- mente fora dos quadros da FMUSP, não tinha os mesmos títulos universitários de seus prováveis concorrentes, todos de reconhecido valor.

Sua inscrição precisaria ser aceita pelo critério de “Notó- rio Saber”. Para ser enquadrado neste item, seria necessário apresentar declarações de pessoas que, de alguma forma, tivessem projeção e merecessem respeito no meio médico. E afirmou que eu já seria uma dessas figuras. Recordou que nossas carreiras universitárias eram semelhantes, feitas fora da faculdade em que nos formáramos, a USP. De fato, enquanto ele atuava no Hospital Dante Pazza- neze e, depois, na Faculdade de Medicina de Uberaba, eu fizera a carreira universitária fora dos quadros da USP: doutorado na Unicamp, livre-docência na Escola Paulista de Medicina, professor titular na Faculdade de Ciências

Médicas da Santa Casa. Além disso, fora eleito Presidente da APM e, nessa eleição, recebera o apoio quase unânime da Congregação da Faculdade de Pinheiros. Por todos esses motivos, entendia que minha declaração, abonando seu nome, também poderia contribuir para sua aceitação, por ocasião da inscrição.

Nunca soube se fez uso dessa declaração. Mas me senti muito honrado com o pedido que me fez e entusiasmado quando, em 1983, ele ganhou o concurso para professor titular da FMUSP.

Foi assim que acompanhei, antes mesmo do concurso, a trajetória acadêmica do Professor Adib Jatene, como titular de cirurgia da FMUSP.

1990

A Presidência da Associação Médica Brasileira estava en- tregue a Antonio Celso Nassif, que já cumpria seu segundo mandato. Sua reeleição se dera para o biênio 1989-1991, de modo consensual, tal o desempenho vistoso e profícuo que tivera no biênio 1987-1989.

Nassif contou-me que havia lembrado ao Conselho De- liberativo da AMB que já por mais de 20 anos não se fazia a entrega da Medalha do Mérito Médico. Essa comenda destina-se a homenagear aqueles que se destacam no exercí- cio profissional e na defesa dos princípios da boa Medicina. Dos que acreditam e praticam a Medicina não para acumular riquezas, mas, sim, para servir aos que sofrem.

Dois nomes foram aprovados para receber a Medalha do Mérito Médico: o de Adib Jatene e o meu. A cerimônia se deu ainda em 1990 e foi, para nós, plena de emoção. Afinal, não pode haver momento em que seja maior a sensação do dever cumprido, em que se recebe de seus pares tal manifestação.

Adib Jatene já recebera outras homenagens desse porte, pelos serviços que prestou à Medicina e ao País. Outras se seguiram, o que o caracte- riza como uma das mais expressivas figuras de nossa época, não só no meio médico mas também no universo da vida pública nacional.

Lá pelas tantas eu manifestei minha admiração pela maneira competente como conseguia administrar, simulta- neamente, tantas atividades diferentes, todas de tão grande responsabilidade. Naqueles anos de Ministério da Saúde era também diretor do Incor, dirigente do Hcor. Com tanta responsabilidade, continuava a ter compromisso com seus pacientes, operando com regularidade.

Um fenômeno de onipresença. Afinal, como conseguia conciliar tantas atividades, simultaneamente? Sua resposta foi exemplar e merece ser relembrada. Vou tentar reproduzir o que disse, mais com minhas palavras do que com as suas.

“Quando aceito uma nova responsabilidade, não é para ser um mero burocrata, que despacha papéis. Sempre suponho que o convite foi feito porque há algo a ser reformulado, em busca de cenários melhores. Se meu objetivo é trazer contribuições que efetivamente signifiquem essa melhoria, tenho que acreditar que as diretrizes que vou traçar devem ter compromisso com o longo prazo e devem permanecer, mesmo depois de minha saída. Isso depende de eu formar uma equipe que se sinta comprometida com as propostas que foram feitas e aceitas. Assim, no dia em que eu for embora, essa equipe técnica continuará a obra iniciada, colhendo os resultados. Quando um administrador pensa dessa manei- ra, cada dia que passa não é um dia a mais em que está no comando, mas, sim, um dia a menos que tem para trabalhar e justificar a aceitação do convite quando assumiu esse co- mando. Vendo minha posição dessa perspectiva, duas coisas ficam evidentes: (i) formuladas minhas propostas, a tarefa principal que tenho é formar uma equipe comprometida com elas; (ii) é preciso ter em mente que amanhã não é um dia a mais que eu tenho para atingir o objetivo mas será, sim, um dia a menos. Tenho de pensar no depois, assegurando a continuidade da administração.”

Esta é a maneira de pensar — e de atuar — de uma figura pública que não pensa em si, mas, sim, em seu país e em seu povo, aos quais procura servir.

1994

Adib já havia deixado o Ministério da Saúde e ainda não fora convidado por Fernando Henrique Cardoso para a ele voltar. Eu tinha algum assunto a discutir com ele e o procurei no Incor. Recebeu-me em sua sala de diretoria e foi, como sempre, atencioso. A conversa se dirigiu para as grandes questões da saúde no Brasil. Afinal, sua presença no Ministério da Saúde fora muito marcante.

1996

A passagem de Jatene pelo Ministério da Saúde enrique- ceu a discussão sobre os rumos que deviam ser tomados, pela Medicina Pública (leia-se o SUS), no Brasil. Foi por ele demonstrado, cabalmente, que dois grandes enfrentamentos deveriam ser feitos. Primeiro, tendo em vista a abrangência do SUS, eram insuficientes os recursos a ele destinados, sendo imprescindível aumentar seu orçamento. E, segundo, era preciso rever a estrutura burocrática, “descomplican- do” a burocracia administrativa, pois as “atividades-meio” consumiam (e consomem) grande parte desses (já escassos) recursos.

Não conseguiu obter o aumento de recursos orçamen- tários, vindos da cobrança de impostos. Contudo, recebeu autorização para trabalhar pela criação de uma contribuição especificamente destinada para a saúde, portanto, para o SUS. Sua peregrinação pelos Estados, buscando apoio dos governadores, e pelas salas do Congresso Federal, para obter a promessa de voto favorável de senadores e deputados, foi acompanhada pela imprensa e, portanto, pela opinião pública.

Nascia, assim, a CPMF, que ficaria vinculada estritamente à saúde. Dinheiro carimbado. Uma alíquota de 0,2% sobre toda e qualquer movimentação financeira iria assegurar um aporte substancial de recursos para o Ministério. Em que pese a descrença de muitos, seu trabalho de apóstolo, de evangelizador, conseguiu conquistar a maioria do Congresso, e a CPMF foi aprovada.

Nessa ocasião, eu era um dos membros da Câmara de Vereadores da Capital de São Paulo, bem como membro da direção estadual do PSDB, também em São Paulo. Pela posição que ocupava, no cenário político, trabalhei intensamente com a minha área partidária, visando vencer certas resistências. Adib Jatene não soube disso, mas aqui de baixo, da planície, dei à sua proposta meu quinhão de contribuição.

No entanto, efetivamente, nosso país ainda precisa melho- rar muito para se tornar sério. Em abono à afirmação, devo relatar dois fatos que ocorreram logo a seguir. O primeiro: como já entrava bastante dinheiro da CPMF, reduziu-se o financiamento orçamentário, ficando tudo mais ou menos na mesma. O segundo: o êxito da CPMF (acima de 20 bilhões de reais por ano), despertou a cobiça de outros setores do Governo Federal. Não se passou muito tempo para que a alíquota da CPMF aumentasse e, assim, outras destinações foram dadas, mas não para a saúde.

O prestígio de Adib Jatene como homem público ficou consagrado pela enorme votação obtida pelo projeto no Congresso Federal. Mérito seu, essencialmente seu.

2006

Hospital do Coração, São Paulo. Em 5 de julho fui in- ternado com o diagnóstico de uma obstrução vascular da embocadura das coronárias quase completa. Indicação para cirurgia de revascularização, que seria trabalhosa.

Pela admiração profissional que sempre tive por Adib Jate- ne e pela estima que sempre nutri por ele, pedi que tomasse em suas mãos a responsabilidade pela cirurgia. Fui para a mesa confiante e sereno. Nenhum sobressalto. Ainda bem que esse era meu estado de espírito. Essa aceitação tranquila do que tinha de ser feito deve ter contribuído para a supe- ração de inesperadas dificuldades que surgiram.

De fato, após cirurgia demorada, por várias horas, a per- manência na UTI, para recuperação, foi por pouquíssimos minutos. O agravamento súbito das condições clínicas, com risco de morte iminente, obrigou que se fizesse nova cirurgia, por outro longo tempo. Ao todo, a equipe cirúrgica perma- neceu na sala por quase 10 horas. Foi o que me contaram bem depois, após uma semana de recuperação em que fui mantido em coma induzido. Mas o final foi feliz. Voltei a me reintegrar à vida pessoal, profissional e acadêmica, estando até hoje em boas condições clínicas.

Foi assim que o conheci ainda melhor, mas agora como seu paciente. A você, amigo Adib Jatene, devo a minha vida. Obrigado!

Publicado no Suplemento Cultural – Janeiro de 2010 – Associação Paulista de Medicina