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Cem anos de imunoterapia em alergia, por Acad. Antonio Carlos Gomes da Silva

14.12.2011 | Tertúlias

Neste ano de 2011, completam-se 100 anos da publicação do tratamento de rinite alérgica por pólen de gramínea — Prophylatic Inoculation Against Hay Fever, no Lancet. O autor Leonard Noon (1877-1913), médico inglês formado em Cambridge, provavelmente alicerçou-se em conhecimentos advindos de experimentos realizados por inúmeros cientistas que o precederam, tanto realizados em animais de laboratório quanto em seres humanos. No tratamento das alergias, cujos agentes provocadores (alérgenos) não possam ser evitados, os alérgenos são usados como se fossem vacinas, no intuito de provocar o fenômeno da tolerância, que envolve a participação do sistema imune.
Esses fatos nos permitem um passeio pela história do conhecimento das doenças e de seus tratamentos, o que nos remete às vizinhanças da civilização cristã, pois o Rei Mithridates VI (132-63 a.C.), Rei de Pontus, região hoje pertencente à Turquia, foi o primeiro ser humano conhecido a desenvolver tolerância tomando doses de veneno de cobra regularmente para não morrer envenenado, como o fora seu pai. Porém, uma espada o matou após tentar envenenar-se, quando, derrotado por Pompeu, temeu ser capturado por Roma.
Girolamo Fracastoro (Hieronymus Fracastorius — 1458-1553), nascido em Verona, médico, matemático, geógrafo e poeta, na sua obra De Contagione (1546), sugeriu que as doenças propagavam-se através de um vetor químico, que chamou de esporo. Três séculos mais tarde, Louis Pasteur (1822-1885), químico, demonstrou que as doenças eram transmitidas por germes, através de experimentos que culminaram com o importante, e até hoje imprescindível, método da pasteurização. Esse brilhante cientista, cujo interesse pela microbiologia cresceu após a morte de dois filhos com febre tifoide, foi o descobridor
da vacina contra a raiva e a testou com sucesso, respaldado por um médico — pois, como químico, não podia medicar —, em um jovem mordido por cão raivoso, por meio de injeções do vírus atenuado.
Mas, antes dele, outro grande cientista, Edward Jenner (1749-1823), inglês, havia observado que as mulheres responsáveis pela ordenha de vacas com lesões nas tetas semelhantes às da temida varíola, desenvolviam uma forma benigna da doença.
Com material oriundo dessas lesões, ele imunizou um garoto de 8 anos em 1796. Esse processo, que Jenner denominou variolae vaccinae, foi consagrado por Pasteur, que, em homenagem a Jenner, o denominou vacinação.
Outro grande vulto da Medicina, Emil Von Behring (1854-1917), médico alemão, demonstrou que o soro de animal infectado pelo tétano imunizava outro animal. Nessa linha de raciocínio, descobriu a antitoxina diftérica em 1890, logo comercializada. Seus estudos lhe valeram o Prêmio Nobel de Fisiologia/Medicina de 1901.
De outra parte, vários pesquisadores desenvolviam experimentos básicos para o conhecimento dos fenômenos imunes.
Desde Magendie (1783-1855) até Portier e Richet (1850-1935), cientistas tinham notado que injeções repetidas de ovoalbumina, soro heterólogo ou toxinas provocavam a morte de animais. Esses fatos levaram Richet, em 1902, a denominar esse fenômeno de Anafilaxia, do grego sem proteção. Clemens Von Priquet (1874-1829), pediatra vienense, observou que pacientes, após receberem injeções repetidas de soro de cavalo ou da vacina antivariólica, tinham reação rápida e grave. Ele denominou esse fenômeno de Alergia, do grego outra energia.
Alexandre Besredka (1870-1940), russo, desenvolveu o conceito de tolerância ao injetar doses crescentes de antígenos em animais que antes desenvolviam fenômeno anafilático. Ele denominou esse fenômeno de Antianafilaxia (1907).
Noon, provavelmente conhecedor desses fatos, realizou com sucesso o primeiro tratamento da febre do feno por injeção subcutânea, apoiando-se em diferentes diluições e testes de provocação, para encontrar a dose inicial e a eficácia do tratamento. Esse método de tratar as alergias, até hoje prevalecente, teve várias denominações através dos anos, desde Inoculação Profilática-Noon (1911), passando por Imunização Ativa (1914) e Hipossensibilização (1922), ambas por Robert Cook (1867- 1930), que as introduziu nos Estados Unidos, e Dessensibilização, chegando, nos últimos anos, até Imunoterapia Específica (SIT) e, atualmente, Imunoterapia Alérgeno Específica (ASIT).
Os conhecimentos para elucidar os mecanismos envolvidos evoluíram, devendo-se destacar, dentre outros muito importantes, a descoberta da imunoglobulina E (IgE) por Kimishige “Kimi” Ishizaka (1925-) em 1968, responsável pelos fenômenos anafiláticos, além de numerosos e rigorosos experimentos que atestaram a eficiência da ASIT.
De grande importância foram os trabalhos de Akdis, M e Akdis, CA que demonstram a participação de linfócitos reguladores (T reg), concluindo que a SIT representa o único e específico método de tratamento das alergias. Francis JN e colaboradores confirmaram a importância de uma linfocina no processo inflamatório alérgico desde o início do tratamento, ou seja, a partir de pequenas doses do alérgeno, a Interleucina 10 originária das T regs, já destacada por Akdis, M & Akdis, CA (2007).
Em uma revisão comemorativa dos 100 anos de imunoterapia em alergia (a ASIT), Akdis, CA e Akdis, M reforçam o papel das células T reg no complexo processo anti-inflamatório. Em resumo, poderíamos concluir que esse método de tratamento interfere no mecanismo da inflamação alérgica do qual participa o linfócito Th2, levando, como consequência, à diminuição a longo prazo da produção de IgE, além do incremento de IgG (IgG4) e IgA. As células T reg também inibem a participação dos mastócitos, eosinófilos e basófilos na inflamação alérgica, além de influenciarem no fenômeno de remodelamento, na
participação das células dendríticas, que passam a liberar IL 10, e de reduzirem as ações inflamatórias de outras linhagens de linfócitos, como Th1 e Th17.
Recentemente, Matricardi, PM e colaboradores concluíram ser a imunoterapia subcutânea (SCIT) tão eficaz quanto a farmacoterapia, atuando como se fora um fármaco, fato que nós, alergistas, já observávamos desde o primeiro retorno dos pacientes com indicação correta de tratamento por SCIT.
Assim, com a evolução dos conhecimentos científicos, comprova-se a importância desse método de tratamento das alergias, já constatado há anos nas clínicas de Alergia, devendo ser prescrito quando não for possível a eliminação do alérgeno, precedendo a farmacoterapia.
Seguem os estudos na tentativa de aprimorar a ASIT, pelo uso de outras vias de administração, como a sublingual em adiantada fase de estudos, a epicutânea e até mesmo a via de administração em nódulos linfáticos subcutâneos. As pesquisas prosseguem também na busca de outros estimulantes imunológicos, como os alérgenos recombinantes e os fragmentos de peptídeos, aprimorando o método tanto no que diz respeito à via de administração menos desconfortável quanto aos efeitos mais duradouros, com decrescentes riscos a reações adversas.