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Dermatologia e Cosmiatria, por Acad. Nelson Guimarães Proença e Acad. Evandro Ararigbóia Rivitti

16.10.2010 | Tertúlias

Na década de 1950, a Dermatologia, como especialidade, era pouco valorizada dentro do meio médico brasileiro. Vejamos um exemplo que comprova claramente essa afirmação. Um de nós, graduado em 1956 pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, manifestou a intenção de se dirigir para a área de Dermatologia. No Hospital das Clínicas de São Paulo, não havia Residência Médica nessa especialidade. Ao procurar pelo então Catedrático de Dermatologia da FMUSP, Professor João de Aguiar Pupo, solicitou permissão para cumprir estágio em sua Clínica de Dermatologia no Hospital das Clínicas de São Paulo. O pedido foi prontamente atendido, havendo até

certo entusiasmo e evidente satisfação ao aceitá-lo. Explicava-se o porquê de tanta satisfação: o pedido anterior que o Professor Pupo recebera no mesmo sentido datava do ano de 1949. Nessa ocasião, foi admitido o Dr. Norberto Belliboni, então recém-formado. Entre 1949 e 1957, haviam decorrido oito anos sem que surgisse um único candidato à especialidade.

Por que tanto desinteresse pela Dermatologia? Por que o dermatologista era tão pouco valorizado? Os colegas mais categorizados da época, docentes da USP — Aguiar Pupo, Sebastião Sampaio, Domingos Ribeiro, Alcântara Madeira, Luiz Baptista, José Augusto Soares e Guilherme Curban —, lamentavam que a Dermatologia fosse tratada como uma especialidade de menor importância na Medicina. Dizia-se dos dermatologistas que “ou curavam seus doentes com os preparados de enxofre, ou não tinham como curá-los”. Esta era uma frase desprimorosa, usada a todo instante, em tom de brincadeira, mas que a todos magoava, muito!

Tal desvalorização da Dermatologia não ocorria só em São Paulo, estando presente também nos demais Estados da Federação.

Só havia uma maneira de modificar esse cenário desprimoroso, desfavorável para os dermatologistas. O caminho da desejada mudança, que levaria a Dermatologia a alcançar prestígio junto às demais especialidades, era óbvio. Tratava-se de buscar a modernização da prática dermatológica, aumentando o conjunto de recursos clínicos e laboratoriais postos à nossa disposição. Do mesmo modo, era necessário integrar a Dermatologia às demais especialidades médicas, aprofundando o conceito de doenças cutâneo-sistêmicas. Era preciso buscar a modernidade, trazendo todos os avanços e as conquistas para o meio médico brasileiro.

Esse salto para a modernidade aconteceu graças ao surgimento de uma geração de líderes de nossa especialidade, a quem muito devemos. Cito alguns dos nomes mais importantes que contribuíram para uma radical mudança: Sebastião Sampaio e Raymundo Martins Castro, em São Paulo; Rubem Azulay, Antar Padilha Gonçalves, Sylvio Fraga e Glyne Rocha, no Rio de Janeiro; Tancredo Furtado, em Belo Horizonte; e Clovis Bopp, no Rio Grande do Sul. E tantos outros, que lideraram a sensacional virada no final dos anos 1950 e durante toda a década de 1960.

A Cirurgia Dermatológica, a Dermatopatologia, o Laboratório Clínico dentro dos serviços (micologia e bacteriologia), a Alergia e Imunologia em Dermatologia e a Oncologia Dermatológica permitiram notáveis progressos, que acabaram por situar a Dermatologia no mesmo nível de qualificação que já havia sido atingido pelas demais especialidades médicas.

Passamos, então, a ser respeitados por nossos colegas, os quais, a partir daí, passaram a nos reconhecer como os verdadeiros especialistas em Medicina Cutânea. E era exatamente isso que nós procurávamos ser. Ficou claro que devíamos sempre ser consultados a respeito de afecções cutâneo-sistêmicas para que fosse dada uma orientação segura em cada caso.

Entramos na década de 1970 com o nosso prestígio em alta. Essa ascenção logo se refletiu no aumento do interesse dos recém-formados por nossa especialidade. Candidatos à formação em Dermatologia começaram a surgir às dezenas e depois às centenas, em todo o País. Foi um salto formidável, antes inimaginável. E nós devemos esse salto, essa mudança de qualidade na especialidade dermatológica àqueles pioneiros que contribuíram para a nossa formação.

Nossa retribuição foi clara: nos juntamos a eles, a nossos mestres, imbuídos dos mesmos propósitos, e nos esforçamos para apreender e dominar todas as áreas de conhecimento relacionadas com a pele. Foi esse o nosso compromisso. Com determinação, seguimos adiante em nossa carreira universitária, procurando ampliar os horizontes da Dermatologia. Acreditamos que nossa geração cumpriu bem o seu papel, realizando aquilo que dela se podia esperar. Talvez até mesmo, em alguns casos, tenhamos superado as expectativas.

Eis que, ao chegarmos ao século XXI, nos deparamos com um cenário que antes não podíamos prever. Trata-se do crescimento progressivo do interesse dos novos dermatologistas pela área de Cosmiatria, o que até não seria um mal, desde que não ocorresse em detrimento da Dermatologia. Porém, temos visto a prática rotineira de procedimentos de Cosmiatria afastando muitos bons dermatologistas do interesse pela patologia da pele. Esse distanciamento chegou a tal ponto que, em nossos consultórios, se tornou comum ouvir a seguinte frase: “Doutor, minha dermatologista é fulana de tal e dela recebo todas as atenções cosméticas. Mas agora estou com uma doença de pele e preciso de seus cuidados”. Tal situação, que se repete constantemente, demonstra que, na cabeça dos clientes, já estão separadas nitidamente as figuras do(a) médico(a) cosmiatra e do(a) médico(a) dermatologista.

Essa exagerada e excessiva valorização dos procedimentos cosmiátricos está produzindo um viés indesejável: sentimos que está contribuindo para diminuir o prestígio de nossa especialidade perante os médicos em geral, sobretudo àqueles mais destacados, que se dedicam ao enfretamento dos processos patológicos em suas respectivas especialidades. É inegável que isso está acontecendo.

É preciso, então, alertar os colegas mais jovens para os riscos de adentrarem excessivamente a área de Cosmetologia (ou de Cosmiatria, como se queira), colocando em segundo plano a Dermatologia propriamente dita, ou mesmo chega- rem, no limite, a abandoná-la. Estamos preocupados e temos refletido sobre essa questão, mas possuímos dificuldade para transmitir a nossos colegas de especialidade o significado de nossas preocupações.

Como articular nosso raciocínio de modo a comunicar nossas reflexões? Nós não queremos ser vistos como aqueles que envelheceram e perderam o “bonde” da história, sendo ultrapassados por concepções mais modernas. Estávamos em uma encruzilhada, indecisos quanto a qual atitude tomar, quando caiu em nossas mãos um texto providencial, que reforçou nossas convicções.

Trata-se da conferência realizada pela Dra. Mary Lupo no meeting da American Academy of Dermatology realizado em 2009. A Dra. Lupo é Professora de Dermatologia da Tulane Medical School e também Diretora do Cosmetic Boot Camp. Vejamos quais foram suas palavras: “eu incentivo médicos habilitados

em estética a aumentar a prática em procedimentos cosméticos, visando ajudar aos pacientes; mas isso também tem ajudado médicos de diversas especialidades a obterem retorno econômico em seus consultórios privados” (grifo nosso).

A doutora destacou, ainda, como é simples trabalhar na área de Comiatria. Suas palavras: “são apenas quatro os pilares dessa área médica: 1º) saber aplicar a toxina botulínica; 2º) saber utilizar os preenchedores; 3º) saber manejar os equipamentos de laser; e 4º) saber indicar os cosméticos adequados, tais como removedores de maquilagem, conservadores de pálpebras, hidratantes etc.”. Só isso! Nada mais!

É óbvio que uma prática tão simples não exige formação especializada após a graduação em medicina. Não é preciso ser dermatologista para dominar essas poucas técnicas e se especializar nessa área. Aliás, é exatamente isso o que pensa a Dra. Mary Lupo, pois oferece treinamento para médicos, segundo ela, de “diversas especialidades”.

Corroborando esse ponto de vista, nós gostaríamos de citar um exemplo bastante recente aqui de nossa terra brasileira. Um grupo de médicos ginecologistas do Rio de Janeiro organizou uma primeira Jornada de Ginecologia e Obstetrícia Estética, realizada naquela cidade em 8 e 9 de agosto de 2009. Para a divulgação do evento, foi distribuído um folder não só aos ginecologistas e obstetras mas também a outros especialistas que supostamente deveriam se interessar pelo campo da estética (aqui incluídos os dermatologistas).

Logo na abertura deste, os organizadores do evento deram destaque ao motivo principal da Jornada, programando duas palestras: “O mercado que nunca percebemos” (Dr. Marcelo Lemgruber) e “Novos Desafios e Novos Rumos” (Dr. Paulo Guimarães).

Qual o programa desenvolvido na “Jornada de Ginecologia e Obstetrícia Estética”? Vejamos: “Luz pulsada e laser em Ginecologia Estética”; “Depilação a laser”; “Tratamento das discromias com luz pulsada”; “Lipólise suprapúbica com lipossomas do girassol”; “Melhoria da conformação dos grandes lábios da vulva com macrolane”; “Laserlipólise aspirativa, laserlipólise não aspirativa e lasersubcision”; “Radiofrequência para combate à flacidez da genitália”; “Tratamento estético acessível ao ginecologista e obstetra: estrias, cicatrizes, celulite, rugas”; “Peelings para a área genital”; “Preenchedores da área genital como complemento à ninfoplastia”; “Uso de cosméticos na gravidez”; “Peelings corporais”; “Tratamento da hiperidrose axilar e pubiana com toxina botulínica”; e “Laser para rejuvenescimento vulvovaginal”. Para completar, uma conferência com objetivos muito práticos: “Marketing e gerenciamento de uma clínica de estética”.

A semelhança entre essa programação e aquelas que compõem jornadas de estética em Dermatologia não é mera coincidência. O ponto de convergência é que essa área de atuação é tão atraente, exigindo tão poucas habilidades e conhecimentos de patologia, que tende a atrair mais e mais médicos, das mais diversas especialidades, inclusive os que não se especializaram em qualquer área.

Daí o inegável êxito das incontáveis “Sociedades de Medicina Estética”, que estão se multiplicando em todos os países do mundo. O que está em jogo é a possibilidade de grandes ganhos econômicos para os médicos e de elevadíssimo faturamento para as empresas fabricantes de equipamentos, cosméticos ou produtos a serem aplicados nos pacientes. É inegável que a enorme adesão de médicos de diferentes especialidades (dermatologistas, cirurgiões plásticos, endocrinologistas, ginecologistas etc.) — e, inclusive, sem especialização alguma — transforma essas “Sociedades de Medicina Estética” em entidades médicas com número crescente de associados. É previsível que elas venham a influir — e muito — na área de Dermatologia.

Voltando à Dra. Mary Lugo, ela faz algumas recomendações para o dermatologista ampliar (e também não perder) a sua clínica de estética: 1o) expor-se à mídia; 2o) manter site; e 3o) investir em marketing.

Mas, apesar de investir na Cosmiatria, Dra. Lugo recomendou prudência em manter as portas abertas para o futuro. Por esse motivo, ela encerrou sua conferência dando uma orientação para o dermatologista: “mantenha aberto o consultório para atendimento a pacientes com doenças de pele, pelas seguintes absolutamente imprópria: “O futuro da Dermatologia está na Cosmiatria”. Depois, com mais modéstia e propriedade, houve uma mudança: “O futuro econômico dos dermatologistas está na prática da Dermatologia Estética”.

Acreditamos que, depois de tudo aquilo que foi destacado no presente artigo, nenhuma dessas abordagens é correta. Dentro de poucos anos, a nosso ver, a área de Cosmiatria estará saturada, sendo apenas viável para quem tenha potencial econômico para disputar, por meio do amplo uso da mídia, a clientela existente.

Por todas essas razões, é imperativo recomendar aos dermatologistas mais jovens que não apostem todas as suas fichas em aplicações de toxina botulínica ou manejo do laser. Continuem praticando a boa Dermatologia, voltada para os processos patológicos, desde os mais simples até os mais graves. Do equilíbrio com que souberem praticar sua especialidade irá resultar o seu sucesso e a sua satisfação profissional.