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Hildegard Schönfeld na ilha dos gatos, por Acad. Arary da Cruz Tiriba

01.02.2010 | Tertúlias

Face linda e atraente, pele alva e fresca, semblante sere- no… esboço para um Michelangelo. Pais imigrantes alemães. Cabelos acastanhados fugiam ao padrão flavo germânico. Comedida nas palavras, espírito reservado, discreta, solícita e eficiente em seu trabalho na enfermaria, lealdade a toda prova. Graduação superior? Não, técnica de enfermagem.

Aos pais velhinhos e enfermos proporcionou atenção até seus últimos dias. Teve duas sobrinhas. A mais nova, órfã na infância, criou-a junto a si. Mãe por inteiro, dedicação integral. A mais velha casara cedo, manteve com Hilde laços formais. A sobrinha-filha, adotiva, teria sido uma razão para Hildegard renunciar ao matrimônio.

Sempre que o Dr. Abaetê organizava uma equipe mul- tiprofissional móvel, nas emergências sanitárias, Hilde figu- rava entre os voluntários selecionados.

Dr. Abaetê conhecera por inteiro Hilde: a profissional, a amiga, a mulher. Nos bons tempos, requisitara-a, durante férias, para seu genitor necessitado de enfermagem. Aqueles que acompanharam o trabalho assistencial de Hilde com- provaram seu desvelo.

Jamais sedutores, mas Dr. Abaetê e ela cederam ao afeto recíproco. Raízes bem inseridas, fluidos atrativos levaram-nos por raras vezes à integração em um só corpo em uma alma só. No clímax da entrega, a face pálida de Hilde coloria-se de vinho. Rubra! Incandescente. Como lambidas das chamas vulcânicas!

SENHOR  TODO-PODEROSO!  União  do  momento,  não pecaminosa, SENHOR! por doação, carinho, fraternidade, afeição. Não premeditada. Estruturas não comprometidas. Mantidas regras, morais, sociais. [A confissão do Dr. Abaetê perante o Senhor e a sociedade.]

Assim que atingiu a contagem para aposentadoria, Hilde retirou-se pensando em se voltar só à filha, toda coração. Contudo, a moça, em preparatório para a universidade, foi subtraída em circunstâncias dramáticas: hemorragias maciças provocadas pelo câncer de evolução ultrarrápida.

10, 9… 3, 2, 1, zero! Acionada a transformação de Hilde- gard Schönfeld. Não para a subida, mas, sim, para a descida. Isolou-se no vetusto casarão, patrimônio único; entre poucos herdeiros, a primeira da partilha. Parcos rendimentos não engordavam a economia. Furtiva, não apelava a ninguém. Medo da rua desenvolvido. Metrô a 200 metros nem chegou a conhecê-lo, negando-se a sair da casa por qualquer meio de transporte. O máximo a que se aventurava era abrir a porta para comprar fruta no carrinho do ambulante. Não comparecia nem sequer ao banco para receber os irrisórios proventos. A sobrinha casada efetuava a retirada e, ocasio- nalmente — a cada dois, três meses —, trazia-lhe biscoitos, alguns embutidos, um mínimo de gêneros alimentícios e… das notas menores do Tesouro Nacional… algumas.

Hilde se abstivera de procurar os antigos companheiros do hospital. Também porque jamais anunciara sobre o local da autossegregação. Após o encerramento de suas atividades na saúde, permaneceu ignorada.

No casaréu desgastado — de pé pela solidez —, oculto pela densa vegetação, Hilde permaneceu, sombra a mais, entre árvores, cipós, galharias, tapete de folhas secas. Até então, nenhum soterramento ocorrera, nem a da edificação, nem a da humana.

O doutor que desenhou sua moral e lealdade, jamais a ignorou. Aportou por vezes na sua ilha para confortar aquela que considerava irmã. Gostava de provocá-la sobre sua es- tranha situação, dizendo que ainda não soara o alarme.

Você, a própria Jane, só lhe falta a Chita por companheira [a macaca dos episódios cinematográficos de Tarzan].

Hildegard Schönfeld reagia.

Você faz pouco caso de mim.

Mas sobrevivia. A vizinha solidária comprava-lhe supri- mentos essenciais. A agente escolar, do colégio confinado com o casarão, ofertava-lhe pelo muro dos fundos sobras das “quentinhas” das crianças do educandário. Como eram guardados os gêneros alimentícios? Na geladeira original. Refrigerador de porta permanentemente aberta. Há muito sem funcionar!

Hilde estava atualizada sobre os acontecimentos, inteirada das falcatruas dos políticos do País — pela TV estragada sem imagem e que só emitia voz! Ainda assim, instrumento para rezar com Padre Marcelo às 6 da manhã de domingo.

Não bastasse a vivência reservada, um marginal pula o portão de ferro lateral; Hilde, no quintal, é derrubada e estrangulada. Sufocada, não sabe como conseguiu gritar tão alto para atrair a vizinhança, o que obrigou o bandido a fugir, misturando-se entre os passageiros do primeiro ônibus, azar seu! A viatura policial deteve o veículo. Estava preso o bandido homicida. Hilde, traumatizada, presta-se à identificação…

Na sua ilha urbana, árvores não eram os únicos seres vivos. Convivência com imenso gatil. Membros incontáveis.

Dentro e fora da casa o rebanho felino desfrutava do espaço. De todos os temperamentos. Os inarredáveis no corredor de passagem. Os arredios. Aos pulos contra a vidraça, os desesperados pela presença estranha. Os indolentes ao sol sobre o teto de zinco do quarto de despejo. Abaixo deles, a entulheira. Sacos de lixo. Toneladas! Na relva, o gato morto, seco, mumificado! Referência de Hilde acerca da carcaça.

— Estou cuidando para enterrar…

Surpreendente! Entre muitas dezenas de animais, cada um atendia pelo nome próprio! Prontamente!

Dr. Abaetê teve consciência de quanto foi estimado por Hildegard Schönfeld. Respeito, admiração, amizade… resis- tentes, permanentes. Como o velho casarão.

No entanto, a cada visita anual a ilha estava por demais repleta. Móveis velhos quebrados. Restos de comida em panelas enferrujadas pelo chão e sobre a mesa… e na ge- ladeira que não gela… dentro e fora, dessecados, mofados, dejetos dos felinos… Hilde não se dava conta do ambiente degradado. Deixava de comer em favor dos bichanos, sua razão de viver. Todos identificados pela Central Hilde.

Recusava qualquer auxílio.

Não preciso de dinheiro.

Você não pode continuar assim, vai acabar denuncia- da. Sua propriedade será interditada por força da vigilância sanitária.

Isso nunca permitirei.

O que estaria sucedendo com a mulher linda e atraente do passado? — perguntava para si o Dr. Abaetê.



O sacerdote fez com que girasse 360º, colocou sobre ela sua mão en- quanto a abençoava, frente e costas. Contudo, confidenciaria ao Dr. Abae- tê, ficara impressionado. Ao centro do monturo, o espectro! De corpo inteiro. Desfiguração completa da formosura de outros tempos. A face seca. Até onde visível, grossas crostas das orelhas ao pescoço. Cabelos até a cintura, cinzento-amarelados, desali- nhados, maltratados, negligenciados. A decomposição. O entulho. O detrito a mais. Mas o contraste: dentro da ca- beça: lucidez! Comunicação coerente! E, ainda remanescentes, suavidade, bondade…

Debalde a insistência do doutor em promover mudança.

À última visita, levou-lhe um rádio de pilha [tomadas elétri- cas da casa, defeituosas, raras funcionavam] e uma caixa de chocolate. O rádio a deixou contente, o chocolate ofereceu à agente escolar para distribuição entre as crianças.

A televisão reformada não lhe chegou a tempo. Dias após, um transeunte espiou pela fresta do portão de ferro. Hilde sem vida, caída na sua selva.

A agente escolar ouvira sobre o tal Dr. Abaetê, lera algumas de suas matérias, tratou de avisá-lo. Ele e mais três pessoas compareceram à noite no velório do cemitério longínquo.

SENHOR! Ouve-me outra vez, SENHOR! Sabes que oro todos os dias por aqueles que me cercam e pelos que me foram caros; entre eles, Hildegard Schönfeld; não posso antever como é o céu onde ela vive, SENHOR, mas posso imaginá-la de touca e avental branco, pura, resplandecente, cercada dos anjos, em sua ilha… vistos como bichanos. [A oração do doutor junto à falecida.]

No dia seguinte, foi inteirado do fenômeno [ou mistério]. À madrugada, os despojos de Hilde foram cercados por gatos! Não os seus. De outra região. Anônimos… Solidários…

Hilde, você aceitaria um religioso para lhe transmitir,                                 

quem sabe, a fonte espiritual?

Ela, que de hábito o acusava, você só vem aqui para me mas- sacrar, não se opôs.

Traga seu amigo missionário.

Publicado no Suplemento Cultural – Janeiro de 2010 – Associação Paulista de Medicina