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O rotavírus e as diarreias alimentares dos viajantes, por Acad. Jenner Cruz

01.03.2010 | Tertúlias

Aprendi a tratar, na prática, as diarreias alimentares no Pronto-Socorro do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo na década de 1950, primeiro como estudante e, depois, como interno, residente e médico-chefe do Pronto-Socorro de Clínica Médica. Meu principal instrutor foi o professor Manginelli, mais alto do que eu, com o seu bigodão e sua voz grossa.

Em um caso de diarreia sem sinais de desidratação e sem febre, utilizávamos uma sulfa de ação intestinal, ora sulfas- suxedina, ora sulfatalidina, conforme houvesse na farmácia, algumas gotas de Atroveran® e carbonato de cálcio em pó, este último só nos casos mais graves. Havendo sinais de desi- dratação, como hipotensão arterial, aplicávamos soro na veia. O Dr. Manginelli ensinava que, quando o paciente vomitava o remédio oral, ele deveria ser repetido, na mesma hora, com dose igual. Poucos necessitavam de uma terceira dose, provavelmente para não receberem de novo o carbonato de cálcio de gosto horrível. Quando havia febre e mal-estar geral, poderia haver uma Shiguella ou uma Salmonella. Nessas situações, adicionávamos cloromicetina por via oral, tendo o cuidado, no caso de a medicação ser de uso contínuo, de não usarmos por muitos dias nem em dose alta, porque poderíamos provocar uma anemia aplástica.

Tenho saudades daqueles dias, mas não da comida do hospital. Como acontece em todos os hospitais, até no exterior, a comida era uma droga, exceto o café da manhã e o bife da meia-noite. Nos plantões noturnos, descíamos à cozinha, por volta da meia-noite, para comer uma carne excelente, frita na chapa. Uma das cozinheiras encarregadas do bife foi minha paciente no Ambulatório da Nefrologia, até a minha “expulsória”, quando completei 70 anos. Expli- co-me: no Serviço Público Estadual, no dia que completa- mos 70 anos, estamos aposentados compulsoriamente, fato que nem sequer precisa ser publicado no Diário Oficial.

Um dia, também detestando a comida, o Dr. Manginelli fez uma aposta com as cozinheiras e a dietista-chefe. Ele iria provar que sabia cozinhar melhor do que elas. Havia um rumor de que ele tinha um restaurante particular. Não sei, nunca fui a esse lugar. As cozinheiras diziam que, ao cozinhar para um hospital inteiro, naqueles panelões, era impossível fazer uma comida saborosa. Em um domingo, no qual eu estava de plantão, o Dr. Manginelli fez uma macarronada para todos: médicos, estudantes, funcionários e pacientes que estavam recebendo dieta geral. Prometeu não trazer nenhum tempero de casa, usaria apenas os do hospital. Foi um sucesso e, como era permitido, quase todos repetiram o prato, deixando de lado a refeição habitual. Outra vitória do Dr. Manginelli!

Há uns 30 anos fui fazer uma excursão rodoviária pela América do Sul com toda a família. O nosso ônibus moder- no, muito chique, com ar condicionado, foi um sucesso na Argentina. Adultos e crianças vinham ver e entrar em seu interior. Em Bariloche, deixamos o ônibus e fomos de barco pelos lagos andinos. O nosso ônibus iria nos esperar em Mendoza, quando voltássemos para a Argentina. O caminho pelo Chile seria feito de barco e ônibus chilenos.

Após atravessarmos os lagos, chegamos a Peuja, um vila- rejo localizado no fim do Chile, perto de Puerto Monti, no fim da tarde, em um pequeno hotel, cansados e famintos. A comida era muito pior que a do nosso hospital. Uma sopa rançosa, de composição ignorada, além de alguns pratos dos quais já não me lembro. No dia seguinte, iríamos para Santiago, nos famosos ônibus chilenos de dois andares, al- moçando no caminho. Bem cedo, por volta das 6 horas da manhã, acordei com cólicas intestinais, náuseas, vômitos e diarreia. Deveria ter sido a sopa da véspera. No entanto, eu estava equipado, posto que havia levado comigo os santos envelopes de Ftalomicina® — um remédio composto de ftalamida, uma parente da sulfatalidina, combinada com antiespasmódicos e constipantes intestinais. Tomei um, dois e acabei tomando o terceiro e o quarto; assim, na hora do café, lá estava eu, sentindo-me curado. Após o café, saímos em direção ao gramado, que circundava o hotel, para esperar os outros colegas de passeio e, então, continuarmos a via- gem. Senti forte náusea e vomitei a maior parte do café da manhã. Uma companheira de viagem tinha o Atroveran® que havia esquecido. Algumas gotas e sarei de novo, podendo fazer o passeio até Santiago sem outros problemas. Almo- cei comida leve e líquidos, mas pude jantar normalmente. Estava curado.

Há aproximadamente 30 anos, trabalhos americanos começaram a duvidar do efeito bactericida das sulfas mal absorvidas pelo intestino, sobretudo contra a Shiguella. Nessa época, em 1972, Kapikian e cols. des- cobriram os vírus patogênicos para o intestino, e, no ano seguinte, Bishop e cols. identificaram o rotavírus, um dos mais importantes desse grupo. Em pouco tempo, os ame- ricanos descobriram que a maior parte das diarreias que afetavam as crianças era de natureza viral. Para complicar, a Academia Americana de Pediatria passou a contraindicar o uso de sulfas, de loperamida, de subsalicilato de bismuto, de absorventes, de lactobacilos, de opiáceos e até de atropina. As diarreias deveriam ser tratadas só com hidratação oral e/ou parenteral.

As autoridades brasileiras, ignorando vários trabalhos na- cionais que elogiavam a ação das sulfas intestinais — e dado que em nosso meio ainda existe muita diarreia de origem alimentar, principalmente em adultos —, resolveu proibir a fabricação e venda de vários antidiarreicos, sobretudo aqueles que continham as sulfas pouco absorvíveis. Quem tivesse diarreia tinha de esperar alguns dias até que a cura espontânea se manifestasse, destruindo o prazer de um passeio ou de um negócio.

Outro tipo de diarreia, a de origem parasitária, em espe- cial proveniente da Entamoeba histolytica e da Giardia lamblia, estava e está em declínio mundial.

Em 2009, tive meu último destempero intestinal, em Milão, na Itália, que, embora de curta duração e intensida- de, perturbou por quase dois dias as minhas atividades. Eu estava sem a bendita Ftalomicina®.

Para mostrar que nem sempre eu tenho razão, o Brasil está sofrendo neste início de ano uma epidemia de diarreia viral, atingindo desde adultos e idosos até crianças de várias faixas etárias, em maior número no litoral (mas também no interior), de causa e disseminação ainda obscuras e que na fase inicial dificulta qualquer medicação oral pela intensidade dos vômitos. Falou-se que se tratava de um rotavírus, mas o seu quadro clínico é um pouco diferente.

Felizmente, desta eu já escapei.