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Outros tempos, por Acad. Manoel Ignacio Rollemberg

16.08.2013 | Tertúlias

A colonização de terras desconhecidas envolveu ingentes esforços de seus pioneiros, ao lado da nostalgia provocada pelo abandono de seus ambientes ancestrais de vida. Na conquista do oeste americano, essas odisseias foram contadas em prosa e verso, por meio da arte hollywoodiana do cinema. Aqui entre nós, não foi muito diferente, embora tivéssemos que separar as características típicas da região tropical.
Naquelas internações de fim de mundo, além do trabalho árduo e interminável, nas suas horas de descanso, muito raras, sobravam poucas possibilidades de lazer. Com toda a força criativa do ser humano, inventaram-se formas de superar o marasmo para proporcionar alguns momentos de diversão. Daí surgirem as tall tales, estórias ingênuas e criativas, que acabaram sendo as alegrias daquele povo no longínquo oeste. Em uma delas, contava-se que certo senhor, inconformado com o fato de os peixes não sobrevive­rem fora da água, resolveu buscar uma mudança nesse estado de coisas. Pescou um peixe bem grande e mergulhou-o vivo em uma grande tina de madeira. À noite, quando a temperatura estava mais amena, retirava o peixe de seu compartimento, colocando-o em um relvado umedecido. Ao apresentar
qualquer sinal de desconforto, recolocava-o imediatamente na tina. Pouco a pouco, o peixe foi tolerando mais e mais tempo fora da água. Nos dias subsequentes, passou a repetir a experiência, dessa vez durante o dia, com o sol escaldante. Finalmente, o peixe já não sentia mais necessidade de estar dentro da água. Passou inclusive a acompanhar o dono, a princípio em pequenos passeios, para depois fazer grandes caminhadas com o amo, como se fosse um animal de estimação. Transformou-se na grande atração da região, para onde se dirigiam forasteiros sequiosos para ver de perto aquele fenômeno. Um dia resolveu visitar um amigo em uma propriedade distante. Saiu por uma estrada poeirenta com
o peixe em seu encalço. Na ocasião, já estava acostumado a ir conversando com o dito-cujo, que o acompanhava pari-passu. Pelo caminho, atravessaram uma pinguela rústica sobre um riacho caudaloso. Mais alguns passos, e percebeu que estava falando sozinho. Ao voltar-se, não viu mais o peixe. Retornou, desesperado, e ao passar pela pinguela constatou que o peixe havia caído entre as fendas para dentro do riacho. Correu para acudi-lo, mas foi tarde. O peixe havia morrido afogado!
Os pioneiros que chegaram a Novo Horizonte, interior do Estado de São Paulo naqueles tempos difíceis também não tinham grandes opções. Muito trabalho. Muita luta. As diversões praticamente inexistiam. Quando muito, uma pescaria no final de semana. Rádios, só um ou dois, de galena: para ouvi-los, era preciso usar fones de ouvidos muito precários, sendo que vencer a estática já consistia em uma vitória. Ao captar a notícia, o ouvinte transferia, de acordo com sua compreensão, o resultado para aquele público aflito e curioso. Pela natureza da cidade minúscula onde praticamente todos se conheciam, e em acordo com a herança vitoriana da época, havia um policiamento coletivo de hábitos, costumes e tudo mais. As distrações variavam entre falatórios, fuxicos, piadas, “venenos” e outros. Algumas pessoas vestiam o “figurino” ideal para essas fofocas, particularmente os oriundos do médio oriente, cujo sotaque e rotinas de vida davam azo a tudo aquilo. Na maioria das vezes, eram seus próprios descendentes, já nascidos nestas plagas, que faziam piadas das mancadas dos ancestrais mais velhos. A maioria havia abandonado, fugindo da opressão, o Império Otomano, que usurpara suas terras na Síria, no Líbano, na Arábia e em outros lugares.

Encontro histórico em evento socioesportivo. À frente, Euclydes Castilho (prefeito municipal), Ulysses Guimar

Entre essas famílias tradicionais, como os Eids, um dos pioneiros foi “seo” Salim, como era conhecido. Circunspecto, pouco falante, teve com dona Salume três filhos brilhantes: Naman (um gentleman), Blanche e Lor. Esta última foi minha colega de ginásio, sempre destacada nos estudos, tendo conseguido concluir sua formação acadêmica como primeira colocada. “Seo” Salim construiu inúmeros imóveis, reservando para a família uma casa em lugar destacado da cidade, com a melhor técnica de construção da época, a qual sobrevive até hoje, intata, graças à visão de seus filhos, que conservam o imóvel contra a onda avassaladora moderna de substituir tudo que é passado. Mas com seu jeitão tacituno, somado a sua
característica prudente em relação aos negócios, passou à categoria dos “muquiranas”, pois, segundo as más línguas, não abria a mão nem para cumprimento.
Encontro histórico em evento socioesportivo. À frente, Euclydes Castilho (prefeito municipal), Ulysses Guimarães (presidente da Câmara dos Deputados) e Zezé Quirino (prócer local). Novo Horizonte, 1956
Um dos divertimentos coletivos mais populares da época consistia em piqueniques organizados por várias famílias, às margens do então caudaloso rio Tietê, sob as sombras de suas margens cobertas por feérica vegetação. Tomavam emprestado um caminhão e o grupo ia encarapitado na carroceria. Determinavam-se os comes e bebes, distribuindo-se as incumbências entre os participantes. Uns levavam as carnes, outros as bebidas, mais outros as frutas; as senhoras faziam bolos e docinhos deliciosos e os espalhavam em toalhas alvíssimas. Conta-se que em uma dessas ocasiões, ao lhe perguntarem o que ele iria levar, “seo” Salim respondeu de pronto: “eu leva Naman!”.
A cidade, muito pequena, dividia-se em duas partes: “lá em cima” e “lá em baixo”. Só havia um dentista com curso superior. Os restantes usavam o pomposo título: “Dentista Prático Licenciado”. Tão Pereira era “lá de baixo”. Moreno escuro de porte avantajado, gostava de usar camisas extravagantes, com um chapelão de abas largas semelhante aos de vaqueiros, mas com desenhos que lembravam os “mariaches” mexicanos. Espalhafatoso nos gestos, gostava de usar palavreado rebuscado, no mais das vezes sem nenhuma conexão. Quando perguntado, dizia-se “mecânico da boca humana”. Nos momentos de folga, ia até a esquina da praça Rio Branco com a rua XV de Novembro, onde ficava a padaria de Guerino & Pires. Ali era comum aparecerem sanfoneiros que, acompanhados de violeiros, davam “canjas”, que os proprietários iam “regando” com cerveja servida com um pão sovado delicioso e porções generosas de mortadela, na época os frios mais em conta. Com isso, atraíam fregueses, que também faziam seus pedidos, engordando as contas. Tal mortadela vinha de um frigorífico de Taquaritinga e não havia bar ou boteco da cidade que não a tivesse. Para os garotos, aquilo era um verdadeiro manjar dos deuses.
Na ocasião, a grande rivalidade do futebol da região centrava-se entre o Guarany de Catanduva e o CAT (Clube Atlético Taquaritinga), e a decisão aconteceria justamente em Taquaritinga, cidade famosa pelos torcedores exaltados. De antemão, já se sabia que, se o Guarany vencesse, o “pau iria quebrar”. Para evitar maiores dissabores, os diretores de Catanduva levaram alguns estivadores. Ao final, o Guarany venceu. Os campos eram cercados por ripas de madeira, verdadeiras armas em potencial. Ao apito final, as ripas foram sendo arrancadas e “tome pancada”, de nada adiantando a presença dos estivadores, que apanharam do mesmo jeito. Os jogadores saíram em disparada em direção à estação de estrada de ferro, correndo um bom pedaço além, para se livrarem da turba. Um forasteiro que assistia ao jogo foi interpelado sobre sua cidade de origem. Só saia “Ca.., Ca.., Ca…”, e o “pau comendo”. O sujeito era gago. Quando conseguiu completar o nome Catiguá, já era tarde. Ao chegar a Novo Horizonte naquela segunda-feira para fazer suas entregas, o motorista do frigorífico estava temeroso, pois iria em seguida a Catanduva. Dizem que, ao ser reconhecido, a multidão cercou o caminhão frigorífico, e foi só mortadela que voou pela avenida Brasil, artéria principal de Catanduva.
A padaria tinha um declive com a rua Quinze, e o Tão Pereira gostava de ficar encostado no canto da porta, colocando­ um dos pés sobre o degrau formado. Por ter enorme estatura, seus pés eram avantajados. Um dos circunstantes fez a observação: “Puxa ‘seo’ Tão, que pezão!”, ao que o dito-cujo foi respondendo, sem delongas: “é que eu sou muito pederasta!”.